Somos Bem-aventurados?
Por João Calvino
Nota do Pr Silvio Dutra: Calvino se limitou a explicar o Salmo primeiro no seu contexto veterotestamentário, e não à luz da presente dispensação da graça. Tudo o que foi dito é a pura expressão da verdade, todavia, há que ser dito que Deus está justificando ímpios que se arrependem e que creem em Cristo, pela graça e mediante a fé. Este é o grande trabalho do evangelho no mundo, a saber, o de converter ímpios em santos para Deus.
“Bem-aventurado é o homem que não anda no conselho dos ímpios, nem se detém na vereda dos pecadores, nem se assenta junto com os escarnecedores. Seu deleite, porém, está na lei de Jeová; e em sua lei medita dia e noite. (Sl 1.1,2)
“Bem-aventurado é o homem”. A intenção do salmista é que tudo estará bem com os devotos servos de Deus, cuja incansável diligência é fazer progresso no estudo da lei divina. Já que o maior contingente do gênero humano vive sempre acostumado a escarnecer da conduta dos santos como sendo mera ingenuidade e a considerar seu labor como sendo total desperdício, era de suma importância que o justo fosse confirmado na vereda da santidade, pela consideração da miserável condição de todos os homens destituídos da bênção de Deus e da convicção de que Deus a ninguém é favorável senão àqueles que zelosamente se devotam ao estudo da verdade divina. Além do mais, como a corrupção sempre prevaleceu no mundo, a uma extensão tal que o caráter geral da vida humana nada mais é senão um perene afastar-se da lei de Deus, o salmista, antes de declarar a ditosa sorte dos estudantes da lei divina, os admoesta a se precaverem para não se deixar levar pela impiedade da multidão que os cerca. Começando com uma declaração que revela sua aversão pelos perversos, ele nos ensina quão impossível é para alguém aplicar sua mente à meditação da lei de Deus, se antes não recuar e afastar-se da sociedade dos ímpios. Eis aqui sem dúvida uma admoestação em extremo necessária; porquanto vemos quão irrefletidamente os homens se precipitam nas armadilhas de Satanás; no mínimo, quão poucos, comparativamente, há que se protegem contra as fascinações do pecado. Para que vivamos plenamente conscientes dos perigos que nos cercam, necessário se faz recordar que o mundo está saturado de corrupção mortífera, e que o primeiro passo para se viver bem consiste em renunciar à companhia dos ímpios, de outra sorte é inevitável que nos contaminemos com sua própria poluição.
(Nota do Pr Silvio Dutra: O que é recomendado não é o isolamento do mundo e muito menos evitar qualquer tipo de contato com pessoas que não temem a Deus, mas evitar as más companhias no sentido da aplicação do ditado de que “come farelo quem com porcos anda”, ou ainda, “dize-me com quem andas e te direi quem és”. O que está em foco é portanto o evitar a má influência e não propriamente as pessoas.)
Como o profeta, em primeiro lugar, prescreve aos santos precaução contra as tentações para o mal, seguiremos a mesma ordem. Sua afirmação, de que é bem-aventurado quem não se enleia com os ímpios, é o que o comum sentimento e opinião do gênero humano dificilmente admitirá; pois enquanto todos os homens naturalmente desejam e correm após a felicidade, vemos com quanta determinação se entregam a seus pecados; sim, todos aqueles que se afastam ao máximo da justiça, procurando satisfazer suas concupiscências, se julgam felizes em virtude de alcançarem os desejos de seu coração. O profeta, ao contrário, aqui ensina que ninguém pode ser devidamente encorajado ao temor e ao serviço de Deus, e bem assim ao estudo de sua lei, sem que, convictamente, se persuada de que todos os ímpios estão em miséria espiritual aos olhos de Deus e que os que não se afastam de sua companhia se envolverão na mesma destruição a eles destinada. Como, porém, não é fácil evitar os ímpios com quem estamos misturados no mundo, sendo-nos impossível distanciar-nos totalmente deles, o salmista, a fim de imprimir maior ênfase à sua exortação, emprega uma multiplicidade de expressões.
Em primeiro lugar, ele nos proíbe de andarmos em seu conselho; em segundo lugar, de determo-nos em sua vereda; e, finalmente, de assentarmo-nos junto deles.
A suma de tudo é: os servos de Deus devem diligenciar ao máximo por cultivar aversão pela vida ímpia. Como, porém, a habilidade de Satanás consiste em insinuar seus embustes, de uma forma muito astuta, o profeta, a fim de que ninguém se deixe insensivelmente enganar, mostra como paulatinamente os homens são ordinariamente induzidos a se desviar de seu reto caminho. No primeiro passo, não se precipitam em franco desprezo a Deus; mas, tendo uma vez começado a dar ouvidos ao mau conselho, Satanás os conduz, passo a passo, a um desvio mais acentuado, até que se lançam de ponta cabeça em franca transgressão. O profeta, pois, começa com conselho, termo este, a meu ver, significando a perversidade que ainda não se exteriorizou abertamente. A seguir ele fala de venda, o que deve ser tomado no sentido de habitual modo ou maneira de viver. E coloca no ápice da ilustração o assento, uma expressão metafórica que designa a obstinação produzida pelo hábito de uma vida pecaminosa. Da mesma forma, também, devem-se entender os três verbos: andar, deter e assentar. Quando uma pessoa anda voluntariamente em consonância com a satisfação de suas luxúrias, a prática do pecado o enfatua tanto que, esquecido de si mesmo, se torna cada vez mais empedernido na perversidade, que o profeta denomina de deter-se no caminho dos pecadores. Então, por fim, segue-se uma desesperada obstinação, a qual o profeta expressa usando a figura assentar-se. Se porventura existe a mesma gradação nas palavras hebraicas, ou seja, um aumento gradual do mal, deixo a critério de outrem. A meu ver, tudo indica que não há, a não ser, talvez, na última palavra. Pois aqueles que são denominados escarnecedores, tendo-se desfeito de todo o temor de Deus, cometem pecado sem qualquer restrição, na esperança de escapar impunemente, e sem compunção ou temor se divertem do juízo de Deus como se jamais houvesse um dia em que serão chamados a prestar-lhe contas. O termo hebraico san chataim, significando a perversidade franca, é mui apropriadamente associado ao termo vereda, o qual significa uma professa e habitual maneira de viver. Ora, se nos dias do salmista necessário se fazia que os devotos adoradores de Deus evitassem a companhia dos ímpios, a fim de manterem sua vida bem estruturada, quanto mais no tempo presente, quando o mundo se transformou em algo muitíssimo mais corrupto, nosso dever é evitar criteriosamente todas as ameaças da sociedade, para que nos conservemos incontaminados de todas as suas impurezas. O profeta, contudo, não só prescreve aos fiéis que se mantenham à distância dos ímpios, temendo ser contaminados por eles, senão que sua admoestação implica ainda que cada um seja prudente, a fim de que não se corrompa e nem se entregue à impiedade. Mesmo que uma pessoa não tenha ainda contraído todo o aviltamento provindo dos maus exemplos, no entanto é possível que se assemelhe aos perversos, ao imitar espontaneamente seus hábitos corrompidos.
No segundo versículo, o salmista não declara simplesmente ser bem-aventurado aquele que teme a Deus, senão que designa o estudo da lei como sendo a marca da piedade, nos ensinando que Deus só é corretamente servido quando sua lei for obedecida. Não se deixa a cada um a liberdade de codificar um sistema de religião ao sabor de sua própria inclinação, senão que o padrão de piedade deve ser tomado da Palavra de Deus. Quando Davi, aqui, fala da lei, não se deve deduzir como se as demais partes da Escritura fossem excluídas, mas, antes, visto que toda a Escritura outra coisa não é senão a exposição da lei, ela é como a cabeça sob a qual se compreende todo o corpo. O profeta, pois, ao enaltecer a lei, inclui todo o restante dos escritos inspirados. É mister, pois, que ele seja compreendido como a exortar os fiéis a meditarem também nos Salmos. Ao caracterizar o santo se deleitando na lei do Senhor, daí podemos aprender que a obediência forçada ou servil não é de forma alguma aceitável diante de Deus, e que só são dignos estudantes da lei aqueles que se achegam a ela com uma mente disposta e se deleitam com suas instruções, não considerando nada mais desejável e delicioso do que extrair dela o genuíno progresso. Desse amor pela lei procede a constante meditação nela, o que o profeta menciona na última cláusula do versículo; pois todos quantos são verdadeiramente impulsionados pelo amor à lei devem sentir prazer no diligente estudo dela.
Ele será como uma árvore plantada junto a ribeiros de águas, que produzirá seu fruto na estação própria, cujas folhas não murcharão, e tudo quanto fizer prosperará.
Aqui, o salmista ilustra, e ao mesmo tempo confirma pelo uso de metáfora, a afirmação feita no versículo precedente; pois ele mostra em que sentido os que temem a Deus são considerados bem-aventurados, ou seja, não porque desfrutem de efêmera e infantil alegria, mas porque se encontram numa condição saudável. Há nas palavras um contraste implícito entre o vigor de uma árvore plantada num solo bem regado e a aparência decaída de uma que, embora viceje prazenteiramente por algum tempo, no entanto logo murcha em decorrência da aridez do solo em que se acha plantada. Com respeito aos ímpios, como vemos mais adiante (Salmo 37.35), eles são às vezes como "os cedros do Líbano". Desfrutam de uma prosperidade tão exuberante, tanto de riquezas quanto de honras, que nada parece faltar-lhes para sua presente felicidade. Não obstante, quanto mais alto se ergam e quanto mais expandam por todos os lados seus galhos, uma vez não possuindo raízes bem fincadas no chão, nem ainda suficiente umidade da qual venha a derivar seus nutrientes, toda a sua beleza se esvai e desaparece. Portanto, é tão-somente pela bênção divina que alguém pode permanecer numa condição de prosperidade. Os que explicam a figura dos fiéis produzindo seu fruto na estação própria, significando que sabiamente discernem quando uma coisa deve ser feita, até onde pode ser bem feita, em minha opinião revela mais sutileza do que bom senso, impondo às palavras do profeta um sentido que ele jamais pretendeu. Obviamente, sua intenção nada mais nada menos era que os filhos de Deus vicejam constantemente, e são sempre regados com as secretas influências da graça divina, de modo que tudo quando lhes suceda é proveitoso para sua salvação. Enquanto que, em contrapartida, os ímpios são arrebatados pelas repentinas tempestades ou consumidos pelo escaldante calor. E ao dizer: “seu fruto na estação própria” ele expressa o pleno amadurecimento do fruto produzido, ao passo que, embora os ímpios aparentem precoce fecundidade, contudo nada produzem que conduza à perfeição (daquela vida que é espiritual e divina – nota do Pr Silvio Dutra).
“Os ímpios não são assim; são, porém, como a palha que o vento dispersa.”(v. 4)
O salmista bem poderia, com propriedade, ter comparado os ímpios a uma árvore que rapidamente murcha, à semelhança de Jeremias que os compara ao arbusto que cresce no deserto (Jer 17.6). Considerando, porém, que tal figura não era suficientemente forte, ele emprega uma outra figura que os exibe por um prisma que os torna ainda mais desprezíveis. E a razão é porque eles não mantêm seus olhos postos na condição de prosperidade da qual se vangloriam por um curto tempo, mas sua mente pondera seriamente na destruição que os aguarda e que, finalmente, os surpreenderá. Portanto, eis o significado: embora os ímpios vivam no momento prosperamente, todavia vão paulatinamente se transformando em palha; pois quando o Senhor os derribar, ele os arrojará de um lado para o outro com a fulminante ira do Seu juízo. Além disso, com essa forma de falar, o Espírito Santo nos ensina a contemplarmos com os olhos da fé o que de outra forma nos pareceria incrível; pois ainda que o ímpio se eleve e surja de forma sobranceira, à semelhança de uma árvore imponente, que descansemos certos de que ele será como a palha ou o refugo, sabendo que no devido tempo Deus o arrojará da alta posição em que se encontra, com o sopro de sua boca.
Portanto, os ímpios não prevalecerão no juízo nem os pecadores, na congregação dos justos. Porque Jeová conhece o caminho dos justos; mas o caminho dos ímpios perecerá. (v. 5,6)
No quinto versículo, o profeta ensina que uma vida feliz depende de uma sã consciência, e que, portanto, não é de admirar que o ímpio de repente se veja sem aquela felicidade que julgava possuir. E há implícita nas palavras uma espécie de concessão: o profeta tacitamente reconhece que os ímpios se deleitam e desfrutam e triunfam durante o reinado da desordem moral do mundo; justamente como os ladrões se regalam nas florestas e esconderijos enquanto se veem fora do alcance da justiça. Ele nos assegura, porém, que as coisas nem sempre correrão bem em seu presente estado de confusão, e que quando forem reduzidas ao seu real estado, tais pessoas ímpias se verão inteiramente privadas de seus prazeres e perceberão que foram enfatuadas imaginando ser felizes. E assim percebemos que o salmista apresenta o ímpio como sendo um ser pobre e miserável, visto que a felicidade é uma bênção interior procedente de uma sã consciência. Ele não nega que, antes que compareçam a juízo, todas as coisas foram bem sucedidas com eles; mas nega que sejam de fato felizes, a menos que tenham substancial e inabalável integridade de caráter para se manterem; pois a genuína integridade dos justos se manifesta quando ela finalmente é provada. É deveras verdade que o Senhor exerce juízo diariamente, quando faz distinção ente os justos e os perversos; visto, porém, que isso só é feito parcialmente nesta vida, devemos olhar mais alto se desejamos ver a assembleia dos justos, da qual se faz menção aqui.
Mesmo neste mundo, a prosperidade dos ímpios começa a se escoar assim que Deus manifesta os seus juízos (porque, sendo despertos do sono, são constrangidos a reconhecerem, queiram ou não, que não têm qualquer parte na assembleia dos justos); visto, porém, que isso nem sempre se concretiza em relação a todos os homens, no presente estado, devemos pacientemente esperar o dia da revelação final, quando Cristo separará as ovelhas dos cabritos. Ao mesmo tempo, devemos ter como verdade geral o fato de que os ímpios estão destinados à miséria; pois suas próprias consciências os condenam em virtude de sua perversidade; e, assim que forem convocados a prestar contas de sua vida, seu sono será interrompido, e então perceberão que estiveram meramente sonhando quando acreditavam ser felizes, sem visualizar em seu interior o real estado de seus corações.
Além do mais, as coisas, aqui, parecem ser atiradas à mercê da sorte, e como não nos é fácil, no meio da confusão prevalecente, reconhecer para ver o que o salmista havia dito, ele, pois, apresenta, para nossa consideração, o grande princípio de que Deus é o Juiz do mundo. Isso concedido, segue-se que não pode haver outra sorte para o reto e o justo senão o bem-estar, enquanto que, em contrapartida, outra sorte não está reservada ao ímpio senão a mais terrível destruição. De acordo com toda a evidência externa, os servos de Deus não podem extrair beneficio algum de sua retidão; mas, como é o oficio peculiar de Deus defendê-los e tomar providência em favor de sua segurança, eles devem viver felizes sob a proteção divina. E de tal fato podemos também concluir que, como Deus é o inexorável vingador contra os perversos, ainda que por algum tempo ele pareça não notar o que o ímpio faz, finalmente o visitará com a destruição. Portanto, em vez de admitirmos ser enganados com sua imaginária felicidade, tenhamos sempre diante de nossos olhos, em circunstâncias de estresses, a providência de Deus, a quem pertence a prerrogativa de estabelecer os negócios do mundo e fazer com que, do caos, surja a perfeita ordem.
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