Um brinde ao Lorde!
Geraldo não gostava do próprio nome. Preferia ser chamado de qualquer coisa, menos de Geraldo. Assim, desde pequeno pediu que o chamassem de Lorde.
Eu o conheci já na adolescência quando saía de uma paixão infantil por um menino cuja casa ele frequentava. Por muitos meses eu o observava saindo e entrando da casa em companhia do garoto mas só anos depois vim a saber que ele era quase um parente, um primo distante e isolado da família.
Em pouco tempo ele passou a morar na casa dos meus pais. Talvez porque não fosse aceito na própria casa, talvez porque não tivesse emprego ou dinheiro ou talvez apenas, porque estava sempre de bom humor e disposto a ajudar em tudo, até nos cuidados com meus dois irmãos menores.
Meu pai o acolheu mesmo diante dos muxoxos da minha mãe.
Eu tinha, então, 16 anos.
Ficamos amigos de cara e com orgulho eu o apresentava como primo. À medida que o tempo passava, fui sabendo da vida dele: perdido, sem profissão, bebia, usava drogas se oferecessem e nunca na vida havia tido um emprego fixo. Porém, Lorde tinha algo especial: um coração imenso que conferia a ele um ingenuidade nata, uma pureza estranha e o melhor senso de humor do mundo.
Ponderei diversas vezes como era possível tanta contradição e talvez justamente pelo fato dele ser tão isento de vaidade, fizesse as besteiras que fazia. Mas isto não importava para mim.
Eu o aceitei. Sem perguntas, sem julgamento, sem querer mudar absolutamente nada. E ele, como repetiu inúmeras vezes, pela primeira vez, quis ficar para sempre em um lugar.
Na maior parte do tempo, ele passava os dias em casa, fazendo pequenas coisas e quando eu chegava da escola, saíamos para caminhar.
Andávamos à noite pela cidade falando coisas absurdas sobre seres estranhos, dimensões paralelas e bandas de rock. Nunca houve uma discussão sequer e invariavelmente nestas caminhadas ele falava sempre sobre o mesmo assunto: eu.
Começava sempre do mesmo jeito: falando das minhas qualidades, dizendo o quanto eu era diferente e me cutucando dizendo que se eu não mudasse, iria sofrer. Eu ouvia e gargalhava com a teoria dele. Não concordava com o que dizia, mas sempre escutava atentamente.
Lorde queria que eu virasse “bolinha”. Era este o termo que usávamos para as garotas que se preocupavam com coisas como a aparência, o futuro casamento, moda e outras coisas do gênero. Eu olhava para o meu jeans rasgado e meus cabelos rebeldes e nem em um milhão de anos me imagina “bolinha”.
Ele insistia. Dizia que eu devia mudar a cabeça, pensar outras coisas menos complicadas, ser mais “normal”. No fim nem ele acreditava no que dizia e em meio a um cutucão e outro afirmava categoricamente que eu iria sofrer se insistisse em ser diferente.
Estas conversas sempre acabavam na praça. Então, subíamos na escada gigante que havia lá, ele deitava no meu colo, eu cantava umas três ou quatro músicas dos Beatles enquanto ele viajava pelas estrelas e em silêncio voltávamos para casa.
Foi assim por um bom tempo. Ele me ajudou quando meu pai partiu, estava lá quando eu me equivoquei em uma paixão, me apoiou quando eu larguei a quarta faculdade, me inscreveu na quinta e me amparou quando eu reconheci que se fosse “bolinha” seria mais fácil.
Ele riu neste dia e me chamou para outra volta até praça.
Lorde nunca me pediu nada. No máximo uma jaqueta emprestada ou um perfume.
Em uma tarde ensolarada eu o vi sério pela primeira vez na vida. Me chamou para conversar assustado e contou alguns sonhos que vinha tendo com a avó que já falecera. Eu sabia do medo que ele sentia de qualquer coisa que cheirasse a paranormalidade. Ouvi com atenção quando ele me pediu um livro que explicasse os sonhos.
Desconheço os motivos que me fizeram indicar um livro que falava sobre espiritismo e vida após a morte.
Cinco dias após esta conversa, ele saiu em uma viagem de moto com um amigo.
Lorde morreu em uma curva em uma estrada de Santa Catarina.
A última cena que guardo dele é o pedido de ajuda. Mas há inúmeras outras cenas fantásticas em minha memória.
Em dias difíceis, me pego conversando mentalmente com ele que ri e debocha dizendo que se eu o tivesse ouvido, com certeza minha vida teria sido mais fácil. Mais limitada por certo, mas sem tantos espinhos e questionamentos.
Lorde foi a primeira pessoa que me enxergou. Com ele aprendi também a ver e a compreender que por baixo desta casca que nos apegamos com unhas e dentes e por trás das besteiras que fazemos na vida, há algo superior chamado “alma”.
Um brinde à você!
Onde estiver meu querido, feliz aniversário!
Eu o conheci já na adolescência quando saía de uma paixão infantil por um menino cuja casa ele frequentava. Por muitos meses eu o observava saindo e entrando da casa em companhia do garoto mas só anos depois vim a saber que ele era quase um parente, um primo distante e isolado da família.
Em pouco tempo ele passou a morar na casa dos meus pais. Talvez porque não fosse aceito na própria casa, talvez porque não tivesse emprego ou dinheiro ou talvez apenas, porque estava sempre de bom humor e disposto a ajudar em tudo, até nos cuidados com meus dois irmãos menores.
Meu pai o acolheu mesmo diante dos muxoxos da minha mãe.
Eu tinha, então, 16 anos.
Ficamos amigos de cara e com orgulho eu o apresentava como primo. À medida que o tempo passava, fui sabendo da vida dele: perdido, sem profissão, bebia, usava drogas se oferecessem e nunca na vida havia tido um emprego fixo. Porém, Lorde tinha algo especial: um coração imenso que conferia a ele um ingenuidade nata, uma pureza estranha e o melhor senso de humor do mundo.
Ponderei diversas vezes como era possível tanta contradição e talvez justamente pelo fato dele ser tão isento de vaidade, fizesse as besteiras que fazia. Mas isto não importava para mim.
Eu o aceitei. Sem perguntas, sem julgamento, sem querer mudar absolutamente nada. E ele, como repetiu inúmeras vezes, pela primeira vez, quis ficar para sempre em um lugar.
Na maior parte do tempo, ele passava os dias em casa, fazendo pequenas coisas e quando eu chegava da escola, saíamos para caminhar.
Andávamos à noite pela cidade falando coisas absurdas sobre seres estranhos, dimensões paralelas e bandas de rock. Nunca houve uma discussão sequer e invariavelmente nestas caminhadas ele falava sempre sobre o mesmo assunto: eu.
Começava sempre do mesmo jeito: falando das minhas qualidades, dizendo o quanto eu era diferente e me cutucando dizendo que se eu não mudasse, iria sofrer. Eu ouvia e gargalhava com a teoria dele. Não concordava com o que dizia, mas sempre escutava atentamente.
Lorde queria que eu virasse “bolinha”. Era este o termo que usávamos para as garotas que se preocupavam com coisas como a aparência, o futuro casamento, moda e outras coisas do gênero. Eu olhava para o meu jeans rasgado e meus cabelos rebeldes e nem em um milhão de anos me imagina “bolinha”.
Ele insistia. Dizia que eu devia mudar a cabeça, pensar outras coisas menos complicadas, ser mais “normal”. No fim nem ele acreditava no que dizia e em meio a um cutucão e outro afirmava categoricamente que eu iria sofrer se insistisse em ser diferente.
Estas conversas sempre acabavam na praça. Então, subíamos na escada gigante que havia lá, ele deitava no meu colo, eu cantava umas três ou quatro músicas dos Beatles enquanto ele viajava pelas estrelas e em silêncio voltávamos para casa.
Foi assim por um bom tempo. Ele me ajudou quando meu pai partiu, estava lá quando eu me equivoquei em uma paixão, me apoiou quando eu larguei a quarta faculdade, me inscreveu na quinta e me amparou quando eu reconheci que se fosse “bolinha” seria mais fácil.
Ele riu neste dia e me chamou para outra volta até praça.
Lorde nunca me pediu nada. No máximo uma jaqueta emprestada ou um perfume.
Em uma tarde ensolarada eu o vi sério pela primeira vez na vida. Me chamou para conversar assustado e contou alguns sonhos que vinha tendo com a avó que já falecera. Eu sabia do medo que ele sentia de qualquer coisa que cheirasse a paranormalidade. Ouvi com atenção quando ele me pediu um livro que explicasse os sonhos.
Desconheço os motivos que me fizeram indicar um livro que falava sobre espiritismo e vida após a morte.
Cinco dias após esta conversa, ele saiu em uma viagem de moto com um amigo.
Lorde morreu em uma curva em uma estrada de Santa Catarina.
A última cena que guardo dele é o pedido de ajuda. Mas há inúmeras outras cenas fantásticas em minha memória.
Em dias difíceis, me pego conversando mentalmente com ele que ri e debocha dizendo que se eu o tivesse ouvido, com certeza minha vida teria sido mais fácil. Mais limitada por certo, mas sem tantos espinhos e questionamentos.
Lorde foi a primeira pessoa que me enxergou. Com ele aprendi também a ver e a compreender que por baixo desta casca que nos apegamos com unhas e dentes e por trás das besteiras que fazemos na vida, há algo superior chamado “alma”.
Um brinde à você!
Onde estiver meu querido, feliz aniversário!