Ahh, meu pai!...
Lá se vão mais de 10 anos que você nos deixou...
Ainda ecoa nos meus ouvidos, a sua voz dizendo pra minha mãe – ele já vai... - quando eu saia bem cedinho ainda com o escuro da madrugada, para pegar a estrada e passava pela janela do quarto de vocês.
Ainda ouço as suas últimas palavras antes de passar por àquela portinhola e entrar para a sala de cirurgia: “...mas a sua irmã precisa saber...” – Você tinha tanta confiança nela, gostava tanto dela, que poucas vezes vi um pai sentir tanto orgulho de uma filha.
Lembra quando lá íamos para você fazer a cirurgia no olho?? Fostes a viagem inteirinha falando com tanto orgulho da minha irmã para sua nora, que ela deve ter enjoado de tanto assunto.
Eu nunca imaginaria que àquela entrada no hospital seria sua última viagem com vida por aqui... O hospital estava superlotado, não havia vaga, mas o médico diagnosticou seu caso como gravíssimo e tivestes que ficar ali mesmo nos corredores, naquele final de tarde. Não era permitido acompanhante ficar ali naquele recinto – corredor de enfermaria – tive que ir pra casa.
Ainda bem, que minha irmã me ligou à noitinha e disse - vai lá, dá um jeitinho e entrar, quem sabe ele não está precisando de alguma coisa, possa estar com sede, etc.
Cheguei justamente na hora em que estavam levando-o para fazer ultra-som, embora não houvesse tempo para fazer os preparativos, iria correr o risco de ser em vão - como foi, não acusou nada.
Assim pude ficar um cadinho mais com você, até entrar na sala de cirurgia por àquela portinhola.
E desse instante, não demorou nem doze horas, você partiu de vez, dessa vida. Penso que você já sabia que a sua “hora” estava se aproximando, pois vivia dizendo que tinha pressa em acabar a construção, porque seu tempo estava curto.
Quando olho para sua malinha de madeira – na verdade um caixote – único “bem” que você tinha quando se casou, me dá um dor lá no fundinho, por imaginar o quão difícil foi a sua vida na infância e juventude.
Você sempre quis passar uma imagem de pai enérgico, autoritário, austero e nos criou com rigor, quando na verdade tinha um coração doce, romântico, sonhador.
Penso que a vida não lhe permitiu “escolhas” e assim, ainda novo, se encabrestou pelas amarras do matrimônio, sem ter chance de escolher àquela que com certeza, seu coração buscava.
Desposastes com uma mulher já madura, forte, de fibra, independente, companheira, de garra, que lhe deu 6 filhos que reduziriam em 3.
Ela independente que era, já tinha algumas reses e um pedacinho de terra. Você, homem trabalhador, junto com ela fez tudo isso se multiplicar e puderam adquirir outros terrenos e se prosperar, levando uma vida pacata e de regular conforto, naquele sertão mineiro.
Você nunca disse nada, mas eu sei que apesar dos 55 anos vividos ao lado dela, não fostes feliz, pois lhe faltava algo...apesar da grande mulher que ela era, mas ela não tinha a sensibilidade e nem o romantismo que o seu coração tanto ansiava. Você não conseguiu ser feliz, embora penso que também não fostes de todo infeliz.
Você apesar de nunca ter frequentado um banco de escola, sabia ler, tinha um entendimento vasto das coisas da vida, das coisas de Deus. Sempre se preocupou com a educação dos seus filhos e nunca mediu esforço para que eles pudessem estudar.
Tinha um coração grandioso, estava sempre a se preocupar com todos, gostava de servir. Homem temente à Deus, católico, sua fé era inabalável, quase sempre uma vez por semana, reunia com a família e ali em volta da mesa da sala, sob a luz de uma lamparina, rezava o Ofício de Nossa Senhora ou o Terço. Com a sua voz grave e pronúncia aberta, ia puxando a reza.
Tinha um discernimento das coisas de Deus, pouco comum para alguém que nunca frequentaste um banco de escola e mesmo assim, lia a Bíblia e pregava os seus ensinamentos. Lembra quando passastes uma noite a discutir religião como seu vizinho protestante, ao se despedirem na cancela da propriedade?? Nem dá pra acreditar...
Você foi um grande homem meu pai, de um caráter inquestionável, todos os respeitavam, inclusive seu pai, quando ele queria saber de alguma coisa esperava você chegar, lembras??
Saímos muito cedo para estudar, desde os 7 anos que vivemos perambulando, ora aqui, ora ali, pois morávamos na roça e não tínhamos escola. Assim, desde cedo tivemos que aprender a nos virar e lógico, ter responsabilidades um tanto quanto precocemente.
Quis a vida que depois eu viria a ter o privilégio do convívio de vocês e assim, absorver um pouco mais dos seus ensinamentos e das suas companhias.
A vida tentou lhe dar uma rasteira, veio o avc, ficastes com um lado paralisado...Sei que foi um dos momentos mais difíceis para você. Ao voltar para casa, se viu num estado de dependência, ter que ser carregado, não conseguia ficar de pé e nem movimentar uma das mãos. Isso lhe deixou envergonhado, foi a primeira vez que vestistes uma bermuda – mas era necessário, para ficar mais fácil de ser cuidado.
Mas você com sua galhardia e perseverança, todos os dias fazia os exercícios – mais para agradar a sua filha – e não demorou muito, já estava a movimentar os membros e voltou a andar sozinho e até mesmo a assinar documentos. Superou o problema da vergonha, ao perceber que isso era uma coisa comum na vida das pessoas, ou seja, quantos viviam problemas parecidos.
Você, sempre muito falante e tinha uma prosa agradável, o que fazia as pessoas que chegavam para visita-los, ficarem sem ao seu redor. Isso deixava a minha mãe um pouco enciumada.
Espero que eu não o tenha decepcionado como filho e peço que me perdoa por algum falta e eu sei que devem ter sido muitas.
Você se foi, mas a sua imagem está viva...
Ora na roça trabalhando naquela serra, cantando as músicas de Teixeirinha;
Ora no curral em meio ao gado;
Ora sentado junto ao monte de mandioca a raspar; ora sentado sevando, enquanto nós tocávamos a roda que girava o bolinete;
Ora tomando seu café na porta da cozinha de manhã, nos dias chuvosos, um pouco encolhido, olhando para a chuva que caia;
Ora sentado a contar casos;
Ora...em tantos outros momentos, momentos que estão vivos e você presente em nossa vidas,
fazendo essa saudade cada vez mais doída porém, nos trazendo a certeza de que você está num ótimo lugar, junto aos Anjos, porque fostes sempre um homem bom, carismático, íntegro, honesto, religioso, sem maldade, sem malícia, ótimo pai, ótimo esposo, ótimo companheiro, sempre amigo e sempre a estender sua mão para quem o procurasse com necessidade.
Mas a imagem mais viva que ficou é àquela com o seu sorriso amigo e carinhoso, de uma pessoa sem maldade, sem malícia e bondoso, que se deixou revelar quando os netos começaram a chegar.
Nós, os teus filhos, somos felizes e orgulhosos por ter tido um pai como você. Tenho certeza que a minha mãe, dentro do seu ângulo de enxergar a vida, sentia-se orgulhosa do marido que escolheu para seu companheiro.
Obrigado por ser o nosso pai. Te amamos muito.
Que saudade de você...
(20 de dezembro de 2013