Um Sonho Banhado em Sangue
Tínhamos, desde o início, a íntima sensação de que dentre as paredes de algum majestoso castelo do mundo estariam delineados os contornos do nosso futuro. Futuro certo, prometido e guardado por toda e qualquer força superior que nos rege. Tempo, Destino, o próprio Universo – todas as divindades que, de acordo com seus desígnios incontestáveis, movem as peças do grande tabuleiro da Vida e reconhecem, acompanham e abençoam os sentimentos sinceros entre os mortais, pareciam conspirar a nosso favor. E o velho castelo, mesmo marcado pelo abandono e pela aura soturna típica dos tempos e propósitos para os quais fora erigido, seria iluminado por arte. Arte em cores e em palavras.
Chamou-me justamente de mago das palavras quando me conheceu mais a fundo. Aprecio e exploro ao máximo as infinitas possibilidades que estas me permitem; regozijo-me ao experimentá-las das mais variadas maneiras, atribuindo distintas cargas semânticas e operando, assim, a verdadeira magia. Magia que tudo pode, feitiço poderoso tal qual o doce e magnético canto entoado pelas sereias de beleza exuberante. Um som aparentemente inofensivo, mas que pode levar os navegantes mais incautos a serem tragados para a morte certeira nas profundezas do oceano.
Palavras podem conduzir ao fundo do oceano da alma, sabe-se disso. Tencionei que mergulhasse em minhas águas de braços abertos, sem qualquer ressalva ou proteção. Que deixasse que minhas ondas, mesmo intensas, lhe conduzissem em segurança a algum paraíso virgem, sem temer.
Num belo dia, propusemo-nos a buscar o nosso castelo, juntos numa grande jornada. Enfrentamos incontáveis dragões pelo caminho, com força física, arte, magia... com sentimento concreto. Cada um à sua maneira, cada um com seus métodos; o importante é que reduzimos temporariamente os obstáculos que se apresentavam à insignificância, frente a tudo que o nosso peito transbordava.
Encontramos, exaustos e depois de muitas montanhas, um castelo imponente, sob um céu cravejado pelas mais cintilantes estrelas. O nosso castelo estava ali, diante dos nossos olhos incrédulos. Da boca, nenhuma palavra. Mais tarde viriam sorrisos, mas naquele momento a surpresa era tamanha que o tempo parecia ter estagnado. Pareceríamos congelados, não fosse o movimento dos nossos cabelos acariciados pelos fortes ventos que dançavam no entorno. Mas voltamos a andar; precisávamos entrar e tomar posse do nosso sonho.
Diante do grande portão, entreguei-me ao cansaço e à sensação de esforço recompensado; solucei, sucumbi - fui ao chão e, já de joelhos, minhas lágrimas encharcavam a terra. Em silêncio, com paciência e cuidado, deu-me as mãos para que me reerguesse. O portão desceu automaticamente, como se a força da nossa vontade o tivesse operado. Entramos, de peitos abertos para o inusitado.
No interior, escuridão total. O cheiro de perigo era forte. Voltei então a cabeça para cima e me assustei com o que vi. Próximo ao que provavelmente era o teto do castelo, havia pontos amarelos cintilantes, que piscavam e se encontravam aos pares. Não eram estrelas; pareciam olhos. Nesse instante, os candelabros do grande salão de entrada se acenderam, também automaticamente. E do teto saíram centenas de morcegos, que alçaram voo, passaram sobre nossas cabeças e rumaram sabe-se lá para onde. Nas mesmas vigas de madeira das quais partiram, entretanto, ainda se encontravam outros seres, também de cabeça para baixo, e cujos olhos continuavam a nos fitar.
O olhar penetrante vinha de vampiros, cujos braços fechados seguravam grandes capas negras, como verdadeiras asas de morcego. Dei um passo para trás, tentei recuar, mas você me segurou vigorosamente pelo braço esquerdo. E o portão se fechou logo atrás de nós. Curiosidade e aflição começaram a me consumir.
Inesperadamente, uma linda valsa começou a tocar no interior da velha construção: era a Segunda Valsa de Shostakovich, uma das minhas preferidas. O som me inebriava, como um canto de sereia. Não consegui perceber que àquela altura quem estava mergulhando para a morte era eu. Os vampiros desceram do teto e, ao tocarem o piso do salão, posicionaram-se aos pares e começaram a valsar à nossa volta. E você, percebendo que eu me encontrava hipnotizado demais para pensar em fugir, soltou-me o braço e me pegou gentilmente pela mão. Ainda sem entender o que se passava, mas extasiado com a situação, olhei para seu rosto, e só então pude perceber as presas proeminentes e afiadas em sua boca. Presas vampirescas, como a dos demais. Mas não me espantei, tampouco quis fugir; sabia que não conseguiria. A música, o cenário e o seu olhar haviam me possuído.
Levou-me carinhosamente para o centro do salão e começamos a valsar. Meu pescoço à mostra prendia toda a sua atenção; seu único desejo era perfurar-me a carne, sugar toda a minha essência e me levar para as trevas. E, no exato instante em que avançaria sobre ele e se saciaria com cada gota do meu sangue, ouvi o canto de um pássaro, que interrompeu definitivamente o momento.
Abri meus olhos; estava sonhando. Encontrava-me em casa, na cama, não no castelo. O pássaro que me acordara ainda cantava à minha janela. Você não estava ali. Não estava mais comigo. Arrepiei-me ao me lembrar do sonho. Teria sido um sonho ou um pesadelo? Confuso, me levantei e, ao passar em frente à janela, notei que o pássaro se assustou e voou para longe. Só consegui ver que era de médio porte, e tinha penas intensamente negras e brilhantes. Belas penas. Percebi que uma delas ficou no parapeito da janela, e a peguei com cautela.
Uma linda pena, misteriosamente atraente. Notei que de sua ponta saía um líquido vermelho e tive a imediata ideia de verificar se era possível escrever com ela, utilizando-a como uma elegante caneta. Peguei então uma folha de papel em branco e me pus a esfregar a ponta sobre ela, constatando que o líquido vermelho era suficiente para delinear perfeitamente as palavras. E escrevi sobre o meu sonho, para que não me esquecesse dele.
Só ao fim, quando todas as palavras que aqui se encontram estiverem expressas e eu colocar o último ponto final, perceberei o cheiro de sangue que emana do papel. Nada de tinta, nada de grafite, tampouco de aquarela: era sangue que escorria da pena, e com ele todas estas palavras foram grafadas. Nosso sonho agora tem o cheiro inconfundível do líquido vermelho que circula em nossas veias.
E em algum plano paralelo, sei que nosso castelo ruiu instantaneamente, levantando uma imensa nuvem de poeira, visível a grandes distâncias.
Leia mais no blog pessoal "Devaneios na Ponta do Lápis": http://devaneiosnapontadolapis.blogspot.com.br/