Quem és tu? - Lc5
Em nossa nota anterior vimos de relance a dificuldade de João Batista em aceitar sua prisão, ao ver encerrado seu ministério profético que indicava Jesus como a salvação de Deus.
Mas não era somente o Batista que passava por dúvidas cruciais, o povo comum também participava das mesmas controvérsias.
“E, estando o povo em expectação, e pensando todos de João, em seus corações, se porventura seria o Cristo...” (Lucas 3.15).
Também havia dúvidas que se levantavam sobre a identidade de Jesus.
“E aconteceu que, estando ele só [Jesus], orando, estavam com ele os discípulos; e perguntou-lhes, dizendo: Quem diz a multidão que eu sou? E, respondendo eles, disseram: João o Batista; outros, Elias, e outros que um dos antigos profetas ressuscitou” (Lc 9.18-19).
Atentemos bem – de João (que não era o Cristo) o povo suspeitou que talvez ele pudesse ser o Messias esperado, mas de Jesus (que era o Cristo) somente algum comentário dúbio em meio a muita confusão, mas sempre pendendo negativamente ao final. Por que razão? Vamos listar algumas vertentes que, somadas, talvez nos levem a entender esta estranha discrepância.
1) Os estranhos hábitos de João, bem como o lugar desértico em que atuava, lembravam acertadamente os antigos profetas de Israel.
“E João andava vestido de pelos de camelo, e com um cinto de couro em redor de seus lombos, e comia gafanhotos e mel silvestre” (Marcos 1.6).
Jesus, neste aspecto, era muito diferente do esperado. Embora as expectativas sempre fossem distorcidas pelos opositores, algumas verdades não podiam ser negadas pelo público geral.
“Porque veio João o Batista, que não comia pão nem bebia vinho, e dizeis: Tem demônio; veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizeis: Eis aí um homem comilão e bebedor de vinho, amigo dos publicanos e pecadores” (Lc 7.33-34).
O filho do homem, além de comer e beber sem nenhum drama de consciência, tinha sempre o péssimo hábito de andar ‘mal acompanhado’!
2) Batista se limitava a uma pregação que buscava arrependimento do povo, e os batizava como consequência – “Então ia ter com ele Jerusalém, e toda a Judeia, e toda a província adjacente ao Jordão; e eram por ele batizados no rio Jordão, confessando os seus pecados” (Mt 3.5-6).
Mas Jesus, além de perdoar pecados ‘imperdoáveis para a época’, a ninguém batizava – “E quando o Senhor entendeu que os fariseus tinham ouvido que Jesus fazia e batizava mais discípulos do que João (ainda que Jesus mesmo não batizava, mas os seus discípulos)” (Jo 4.1-2).
3) Nem precisamos lembrar que Jesus, mesmo sem pecado ou necessidade de qualquer tipo de arrependimento, foi contudo batizado por João, ainda que para “cumprir toda a justiça” (Mt 3.15).
4) E ainda quanto aos elementos deste batismo, o de João era perfeitamente conformado e sensível ao espírito humano, mas o de Jesus era algo muito íntimo, inovador, sem comprovação de qualquer espécie, e ainda agregava um sinal por demais ameaçador – o fogo!
“Eu [João], na verdade, batizo-vos com água... esse [Jesus] vos batizará com o Espírito Santo e com fogo” (Lc 3.16).
5) Como vimos em artigo anterior, João era fruto de um milagre facilmente comprovável – a esterilidade e velhice de Isabel; Jesus era fruto de algo incomparável e altamente questionável – a virgindade de uma moça.
Para não prolongarmos esta discussão, 2 pontos finais que pesam muito a favor da possível messianidade de João, e vacilam em direção de Jesus – a posição social e tribal, e a natureza elementar de cada um deles.
6) João era filho de “um sacerdote chamado Zacarias, da ordem de Abias, e cuja mulher era das filhas de Arão” (Lc 1.5). Portanto, João também era sacerdote por descendência de Arão – o grande sumo sacerdote do passado. Eram os sacerdotes que definiam tudo a respeito das leis cerimoniais de Israel. Quem melhor candidato para o Cristo?!
Quanto a Jesus – “Não é este o filho do carpinteiro?” (Mt 13.55). E mais: primeiro pela boca dos fariseus – “Examina, e verás que da Galileia nenhum profeta surgiu” (Jo 7.52). E segundo pela boca de um futuro apóstolo de Jesus – “Disse-lhe Natanael: Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” (Jo 1.46).
O peso de um sacerdote, da família escolhida dos levitas, desbotava inevitavelmente a imagem de um carpinteiro de alguma pequena cidade sem prestígio nos confins da Galileia dos odiados gentios.
7) E para finalizar, a natureza divina de Jesus (por mais paradoxal que possa parecer) era um contrapeso que o afastava da humanidade. João Batista era em tudo semelhante a tudo que conheciam, mas aquele que insinuava plena divindade certamente os constrangia de alguma forma. Como diz a Escritura através de Paulo – “o amor de Cristo nos constrange” (2 Coríntios 5:14).
Assim, se fosse uma questão de escolha de candidatos, João seria obviamente o escolhido do povo. O milagre claro e inquestionável de seu nascimento, seu rigor alimentar e eremita quase, seu batismo com água condizente com a necessidade humana mais premente, o fato de João mesmo ter batizado Jesus, sua posição sacerdotal, sua ancestralidade levítica, sua suficiente natureza humana – tudo pendia favoravelmente a ele para a vaga de Messias.
Mas como antecipou Isaías de Jesus – “Não tinha beleza nem formosura e, olhando nós para ele, não havia boa aparência nele, para que o desejássemos” (53.2).