O deserto e a prisão - Lc4

Vimos nas notas anteriores deste exame de Lucas, o chamado irresistível, unilateral e gracioso de João Batista – ainda já desde o ventre daquela que era estéril – para seu grande ministério de ‘aplainar’ os caminhos do Senhor.

Havia, como se costuma dizer entre os cristãos, grandes promessas sobre sua vida. Vejamos algumas.

“Muitos [mas nem todos!] se alegrarão no seu nascimento, porque será grande diante do Senhor, e não beberá vinho, nem bebida forte, e será cheio do Espírito Santo, já desde o ventre de sua mãe. E converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor seu Deus, e irá adiante dele no espírito e virtude de Elias, para converter os corações dos pais aos filhos, e os rebeldes à prudência dos justos, com o fim de preparar ao Senhor um povo bem disposto... E tu, ó menino, serás chamado profeta do Altíssimo, porque hás de ir ante a face do Senhor, a preparar os seus caminhos; para dar ao seu povo conhecimento da salvação, na remissão dos seus pecados; pelas entranhas da misericórdia do nosso Deus, com que o oriente do alto nos visitou; para iluminar aos que estão assentados em trevas e na sombra da morte; a fim de dirigir os nossos pés pelo caminho da paz” (Lucas 1.14-17,76-79).

Que distinção única de privilégios, vantagens e obrigação! – grande, cheio do Espírito, desde o ventre, conversão, preparação, alegria, conhecimento da salvação, remissão dos pecados, iluminação, direção, espírito e poder de Elias, um povo bem disposto, profeta do Altíssimo...

Estas eram as diretrizes que guiariam o menino, o rapaz, o homem, o profeta... mas devemos sempre lembrar que a toda ação – corresponderá sempre uma reação em sentido contrário.

A força espiritual que o impelia pode ser sentida em suas pesadas palavras, típicas dos grandes profetas do Antigo Testamento.

“Dizia, pois, João à multidão que saía para ser batizada por ele: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir? Produzi, pois, frutos dignos de arrependimento” (Lucas 3.7-8).

Não havia dúvidas em seu coração – tanto da mensagem gloriosa de arrependimento que proclamava, quanto do caminho que preparava para seu Senhor.

“Eu, na verdade, batizo-vos com água, mas eis que vem aquele que é mais poderoso do que eu, do qual não sou digno de desatar a correia das alparcas; esse vos batizará com o Espírito Santo e com fogo” (Lc 3.16).

Mas algo aconteceu em seu curso feliz que o fez titubear. Ele estava preparado para a liberdade do deserto, pregando na aridez das almas – mas não para as cadeias que o tiravam da cena profética.

Passados alguns meses preso, pede a seus discípulos que questionem Jesus.

“E correu dele [de Jesus] esta fama por toda a Judeia e por toda a terra circunvizinha. E os discípulos de João anunciaram-lhe todas estas coisas. E João, chamando dois dos seus discípulos, enviou-os a Jesus, dizendo: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro?” (Lc 7.17-19).

No passado recente antes do cárcere, não havia qualquer vestígio de dúvida em sua mente quanto à identidade do Messias tão esperado e pregado por ele. Era óbvio que aquele Jesus era o Filho de Deus prometido por todos os profetas, e ele como seu precursor estaria ‘garantido’ por esta associação. O que ele não podia entender – como muitos da Igreja hoje também não aceitam – era que a ligação com Jesus trazia tanto a aprovação quanto a reprovação inerentes ao seu ministério. Ele não podia aceitar seu sofrimento pessoal depois de pregação tão sincera, fervorosa e transformadora... Sua prisão era como uma mancha em seu ‘currículo’. Era esta sua recompensa?!

A resposta de Jesus a João não tem atenuantes, explicações ou desculpas.

“Respondendo, então, Jesus, disse-lhes: Ide, e anunciai a João o que tendes visto e ouvido: que os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres anuncia-se o evangelho. E bem-aventurado é aquele que em mim se não escandalizar” (7.22-23).

O grande apóstolo Paulo, pela experiência adquirida em anos de pregação e perseguição, conhecia muito bem o dilema.

“Também nos alegramos ao enfrentar dificuldades e provações, pois sabemos que contribuem para desenvolvermos perseverança” (Romanos 5.3).

O que vai determinar se a provação desenvolverá ou não a perseverança e promover a fé como um todo, é o posicionamento correto de nosso ego diante da vontade soberana de Deus.

Não podemos entrar nos motivos íntimos que levaram João a duvidar da identidade do Cordeiro que ele mesmo ajudou a elevar, mas é inegável que falhou no momento mais crucial – sua prisão falou mais alto que a glória dos caminhos de Deus.

Deixo apenas uma dica de uma possível brecha que talvez tenha culminado na ruptura de sua fé. Ele mesmo havia declarado antes pelo Espírito – “É necessário que ele [Jesus] cresça e que eu diminua” (João 3.30).

Os 2 lados da mesma moeda podem ser questionados – o que João ainda fazia com discípulos? Não era para ele diminuir?! E por que ainda seguiam o precursor, o batedor, o provisório, a sombra? Não deveriam elevar o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo?!

É na graça suficiente de Jesus – o único Cristo autorizado que nos concede entrada ampla, perfeita e eterna ao Pai – que me despeço até nosso próximo texto.