Compartilhar as escovas e a vida
Compartilhar as escovas e a vida
Desde pequena ela gostava de brincar de casinha. Adorava a boneca – era sua mãe. Arrumava e penteava sua “filha” com tamanho zelo que ela mesma se elogiava. “Belo trabalho, você está linda”, dizia.
Cresceu vendo filmes de romance e lendo livros em que o mocinho e a mocinha ficavam juntos e eram felizes para sempre. Ela chorava tanto no final da novela, sempre fora sensível!
Amava as música que falavam de amor também. Colocava o fone de ouvido e voava nas letras das canções... queria um amor daqueles, queria um amor de status.
Mas a vida não é como brincar de casinha, como nos filmes, nas novelas, nas canções...
Por um golpe (chamarei de golpe, é o nome mais propício) da vida, ela não conseguiu seu amor de status. Não conseguiu porque se fechou. Deixou passar, talvez. E quando se viu sozinha, sentiu que deveria fazer alguma coisa. Mas que coisa?
Sentia-se tão vazia, tão só... achava que não havia sua metade da laranja. Tudo o que ela mais queria era ter alguém com quem compartilhar as escovas e a vida. Queria ser como aquele casal de idosos que ela vira certa tarde em uma praça: alheios aos outros, acariciando-se, falando de AMOR. Um amor que – olhe só! – já durava cinquenta anos.
Ela queria um amor de status que durasse o suficiente para ter bodas de ouro. Queria alguém para lhe esquentar nas noites de chuva e lhe falar sacanagens ao pé do ouvido em plena seis horas da manhã, quando o dois acordassem depois de uma linda noite de conchinha e ela fosse fazer o seu café. Ela queria fazer café para ele. E cafuné.
Queria ter uma casa farta de comida, filhos e amigos. Queria fazer ceia de Natal e chamar a família dele – queria conquistar a sogra pelo estômago. Queria tirar um zilhão de fotos com ele e espalhar pela casa e pelas redes sociais. Queria reclamar que ele sempre deixava a toalha em cima da cama, ensopada, e queria sentir raiva quando ele a fizesse rir por estar brigando com ele. “É só uma toalha, amor”, ele iria lhe falar, lhe agarrando por trás, e ela se derreteria toda. Passada está a discussão.
Quando ele viajasse a trabalho, ela queria sentir aquele frio da saudade. Sentiria com prazer, pois sabia que o seu amado voltaria para os seus braços em breve, ainda mais apaixonado, ainda mais apaixonante.
Ela queria vestir suas camisetas só pra sentir seu cheiro quando ele estivesse fora. Queria ligar pra ele e dizer que o almoço de hoje era especial e a sobremesa era amor. Fariam amor após o almoço. E após o jantar. E talvez após o próprio amor. Fariam sempre amor. Amor físico, amor carnal, e amor AMOR mesmo. Aquele amor que se faz com os olhos, que se faz com os sorrisos, que se faz com palavras e com presentes inesperados no fim da tarde. Aquele amor que ela tanto sonhara: um amor de status.
Mas ela tem de acordar. Precisa, antes de viver esse amor, encontra-se com ele. Precisa esbarrar nele e acontecer aquela troca de olhares que vai durar uma infinidade de segundos e depois a eternidade. Ela precisa se preparar pra ele, pois sabe, lá no fundo, que ele está a sua procura, esperando por ela. Ela se força a acreditar nisso, e ela gosta de acreditar.
Ela não deseja nada demais, não deseja coisas de outro mundo. Ela só quer ser feliz. Ela só quer compartilhar as escovas com alguém. E a vida.
Kamila Rodrigues
09 de Dezembro de 2015