Vislumbre Indigente

Inverno. 2012. Ao fim da tarde, alguns indigentes vão procurando os refúgios nos recantos dos velhos prédios de Lisboa. Algumas das ruas pombalinas, estão mal iluminadas. A chuva miudinha cai devagar, sem pressa, tem a noite inteira para cair sobre quem não passa; passa um casal de namorados, ainda felizes e enamorados: ele despiu metade do sobretudo e abrigou a amada, enquanto correm, rindo em dueto, na direção da porta do cinema S. Jorge. Um grupo de jovens músicos, com t-shirts pretas do Hot Clube Jazz, descarregam da carrinha: um contrabaixo, os timbalões de bateria e outros apetrechos que eu não vi. Nos painéis publicitários vejo, em letras garrafais: "Semana de Jazz em Lisboa".

Vou descendo a avenida da Liberdade, no cruzamento da rua do Salitre vejo duas velhas prostitutas, falando baixinho: ainda é muito cedo para serem vistas. À minha esquerda, junto do Monumento aos Mortos da Grande Guerra, um velho esfarrapado tenta levantar o que parecia uma mulher de borco. Ninguém para. Mas o idoso não desiste, insiste, insiste e dá tapinhas na cara da pobre indigente. Ela vai-se levantado, aparentemente doente, e beija o amigo na face. Ele abraça-a, e as minhas lágrimas soltam-se ao ritmo da chuva miudinha. Subitamente, vejo a assinatura do Criador no meio da pobreza da noite.

Não resisto, atravesso a rua divisória e pergunto se precisam de alguma coisa. Ela, agora de pé, olha para mim e diz-me com uma voz frágil: obrigado, mas já encontrei um amigo que cuida de mim. Insisto, insisto em pagar-lhe uma sopa. Eles agradecem e desaparecem, amparando-se mutuamente, no meio do grupo de transeuntes. Fiquei ali parado, sem sentir a chuva, nem o vento, nem o aviso do polícia sobre o perigo de ser assaltado. Acabei de ver a assinatura do Amor, através de um ato de amizade-altruísta, no lugar mais improvável. Por vezes, o indigente sou eu.

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