Conceito de Poesia (Pedro Lyra)                              

 

 

 

 

Tentando situar o problema na realidade social do nosso tempo, logo veremos que hoje abre-se um espaço bem mais vasto para a poesia de combate do que para a de fruição, o que justifica plenamente a preponderância de uma atitude de denúncia sobre a atitude de celebração por parte dos poetas contemporâneos mais conscientes.

 

 

 

 

Lyra, Pedro. Conceito de Poesia. Editora Ática, São Paulo, 1986. Página 83.

 

 

Poesia: a transitividade do ser

 

... o poético não se restringe ao atrativo, muito menos ao belo: se ele de fato se identifica com o transitivo, a máxima feiúra é tão radicalmente poética quanto a máxima beleza, a máxima baixeza quanto a máxima altivez, a máxima velhice quanto a máxima novidade - pois que são poéticas não pela simples aparência/magnitude/duração, nem apenas pelo que apresentem de atrativo, mas sim pela transitividade da aparência, da magnitude, da duração, a qual compreende também o repulsivo.

 

Aí estão os extremos de sua transitividade, isto é, a sua poeticidade extrema - negativa e positiva, por repulsão e atração. ... [ EXEMPLOS ] ... Aí está todo o arco da transitividade, isto é, do poético - estendido do sórdido ao sublime, da máxima negatividade à máxima positividade, da máxima repulsão à máxima atração, cobrindo toda a realidade do Universo, natural e cultural. E tudo resgatado pelo poeta — que o capta, processa-o e objetiva-o no poema. ...

 

Melhor que qualquer teórico, um poeta (Vinícius) resumiu tudo intuitivamente a partir de sua própria experiência (os colchetes e grifos são meus - Pedro Lyra):

 

O material do poeta é a vida, e só a vida [substância], com tudo que ela tem de sórdido [repulsão] e sublime [atração]. Seu instrumento é a palavra. Sua função é a de ser expressão verbal rítmica [forma] ao mundo informe de sensações, sentimentos e pressentimentos dos outros com relação a tudo que existe [positividade] ou é passível de existência [negatividade] no mundo mágico da imaginação. ...

 

Não é preciso (nem possível - exceto aquela conferida pela forma estética) considerar coisas repulsivas como "passíveis de beleza" para aceitá-las como poéticas: Isso é fruto da insuficiência e da distorção da visão idealista e esteticista da poesia. Mas vê-las diretamente como poéticas, porque transitivas — sem a mediação privilegiada deste ou daquele aspecto. ...

 

Isso tudo nos conduz a um fato corriqueiro: O preconceito idealista contra o que o senso comum chama de "antipoético", simploriamente concebido como o contrário do "poético". Ora, sendo o poético todo o transitivo, o seu contrário não é o antipoético (o antitransitivo?) mas o não-poético (o in-transitivo). O que este senso comum chama de antipoético é o negativo existencial, ou seja, uma simples face do poético/repulsão, o que se harmoniza plenamente com o fato de este mesmo senso comum reduzir a poesia ao poético/atração.

 

Portanto, o poético reúne o atrativo ... e o repulsivo ... — e o antipoético simplesmente não existe.

 

Com este reconhecimento, despoja-se o poético de sua limitação ao conceito idealista que só o entendia como beleza (ou, quando muito, como atração) para assumir a plenitude de sua múltipla transitividade, que incorpora também não só o feio mas todo o espectro do repulsivo, como acabamos de ver. Ao mesmo tempo, confere à poesia a sua tão avidamente perseguida e tão tropegamente proclamada independência em face da moral e, sobretudo, do senso e gosto comuns — dois entraves que tanto bloquearam a formulação objetiva e totalizante do seu conceito. ...

 

A pressão da negatividade

 

Na exploração dos objetos-atração, a função do poeta tem sido celebrá-los, já que eles se oferecem à fruição por seu valor positivo. Na dos objetos-repulsão, ela tem sido dupla: por um lado, a de combatê-los, para colaborar com sua superação e abrir um espaço para que possam reverter ao pólo da atração — ... como fazem todos os poetas que se voltam contra as sociedades decadentes, visando à construção de uma nova; por outro lado, a de atribuir, através do poema, um valor positivo a essas situações/objetos negativos, para que também possam reverter ao pólo da atração... Atribuir valor positivo a coisas dotadas de valor negativo, não atribuir "poesia", como afirma o senso comum — porque elas, se foram capazes de provocar um poema, eram transitivas e, portanto, já continham em si uma carga poética: Poesia da negatividade, mas poesia. Se o poeta infunde algo às coisas, esse algo é um sentido humano; e, se esse sentido humano puder ser identificado com poesia, trata-se apenas da poesia da positividade, porque essas coisas já estavam antes dotadas da poesia da negatividade. ...

 

Antes de tudo, ressalte-se o maior poder de impressão da negatividade do que da positividade sobre o espírito humano: A dor é sempre mais profunda do que o prazer, pelo fato mesmo de não ser desejável, de não termos sido capazes de evitá-la e, por isso, nos marca com a sensação de impotência que nos provoca a superá-la, ao pôr em xeque o nosso próprio ser como agente criador e fruidor de vida. É, portanto, uma provocação que vai permanecendo — e nos ameaçando: Por isso, nos repta a superá-la. A positividade, ao contrário, pelo seu conteúdo de oferta de prazer, de vida, tende a ser consumida em sua própria duração, em cuja fruição o ser vai realizando a sua humanidade.

 

Se o momento positivo exorta à fruição do próprio viver, ele anula a necessidade de manifestação no sentido da produção de uma vida imaginária — uma vida segunda —, que seria exatamente aquela proporcionada pela poesia originada da negatividade. ...

 

... o que ocorre nos momentos de negatividade, de ausência de vida, de infelicidade: O ser que perdeu é instintivamente conduzido à procura de um substituto, de uma compensação, e o meio mais eficaz para isso tem sido, reconhecidamente, a arte — a única prática cultural capaz de criação de uma outra vida, compensatória apesar de imaginária. ...

 

Somente a arte tem esse poder transfigurador de transformar o negativo em positivo, o instante de privação em instante de plenitude. Mas esta sua propriedade não autoriza o artista a reduzi-la a um mero instrumento de sublimação de suas frustrações pessoais.

 

Enquanto o negativo tende a permanecer, porque prende o sujeito reptado a superá-lo, o positivo tende a desaparecer, precisamente porque já foi superado no instante mesmo de sua fruição: Este eleva o ser a um nível superior de seu percurso vital — e por isso é superado; aquele o mantém no mesmo nível, degrada-o ou até mesmo o destrói — e por isso permanece a provocá-lo para evitar essa destruição. É esta a razão da tendência das sensações negativas à permanência.

 

Ao situar o homem num estágio de auto-realização, a positividade deixa de provocá-lo e por isso comporta um impulso conservador que o afasta da prática poética; a negatividade o retém num estágio insatisfatório e por isso comporta um impulso modificador dessa situação no sentido de superá-la, o que frequentemente o conduz a uma prática cultural. Noutras palavras: A poesia do positivo quer apenas desfrutar o mundo, visa à sua pura e simples fruição, o que, se é o melhor da vida, não é o mais elevado — e pode aliar-se a um certo pedantismo ou mesmo egoísmo, como naquele "Vulcão" de Martins Fontes; a poesia do negativo quer e precisa transformá-lo e luta pelo seu resgate, para uma fruição posterior — e pode aliar-se a um certo sentimento de altruísmo ou desprendimento, como no clamor humano das "Vozes d'África". ...

 

Por tudo isso, a positividade é um momento de vida, não de arte; a negatividade é um momento para a arte, não para a vida. Como privação, esta encerra uma provocação que impulsiona o ser humano a uma luta para superá-la: Quando através da arte, a obra então produzida restaura para o seu autor a razão de viver, pelo fato de haver conseguido objetivar na obra esse momento de morte transformado em vida — imaginária, mas, para ele, bem mais real. ...

 

Ao celebrar a sua própria felicidadezinha, o poeta pode estar — sem perceber — reduzindo o mundo ao seu mundo; mas, ao falar da sua desgraça, ela está se plantando no coração da humanidade.

 

Tentando situar o problema na realidade social do nosso tempo, logo veremos que hoje abre-se um espaço bem mais vasto para a poesia de combate do que para a de fruição, o que justifica plenamente a preponderância de uma atitude de denúncia sobre a atitude de celebração por parte dos poetas contemporâneos mais conscientes. Os aspectos negativos superam amplamente os positivos: Basta olhar e ver que há muito mais coisas feias (por exemplo: A miséria) do que belas; e, quanto aos aspectos duplos, há muito mais coisas no pólo da repulsão (pequenas: O nível moral da maioria dos homens públicos; grandes: A injustiça social; novas: As técnicas industriais de exploração do homem; velhas: A própria forma de organização da sociedade) do que no pólo da atração. Quando um poeta se rebela num poema contra os objetos/situações como os dos exemplos — e estes cinco como que cobrem toda a moderna poesia de protesto —, ele apenas está situando a poesia no pólo da repulsão, poetizando a negatividade, e cumprindo aquela função de combatê-los para superá-los. Se, no passado, a relação foi inversa, isso indica muito claramente o estado de decadência a que fomos arrastados, e por que a poesia de denúncia quase baniu a poesia de celebração: É que hoje há muito a denunciar e quase nada a celebrar.

 

Se observarmos mais atentamente, veremos que a questão radica não no simples poético, mas no próprio existencial. A nossa existência pode ser vista como uma sequência renovada de desejo-conquista-perda: E desejamos muito, conquistamos pouco, perdemos tudo com a morte. Não nos conformamos com isso. Qualquer levantamento estatístico revelaria que a maior parte dos poemas até hoje escritos ou manifestam um desejo, ou celebram uma conquista, ou lamentam uma perda — com larga predominância dos dois extremos (portanto: Da negatividade) como motivo gerador, e particularmente pelo aspecto da grandeza.. Ora, se estamos condenados a perder tudo pela morte, é o nosso próprio e profundo instinto de preservação da vida que nos conduz, ainda que inconscientemente, a buscar uma maneira de evitar essa perda total. A poesia (e a arte de um modo geral) oferece um meio eficaz: Sob forma abstrata, ela preserva do desaparecimento definitivo o pouco que conquistamos.

 

No poema, transfigurando a realidade, o desejo/lamento se transforma em conquista: A obra — que ocupa o lugar da perda. Liberta da fugacidade do tempo, a obra eterniza o projeto do sujeito, realizando-o sob uma outra forma. Manuel Bandeira deixou para a eternidade o seu verso mais famoso: "A vida inteira que podia ter sido e que não foi" — um claro misto de desejo e lamento, em que a arte neutraliza a perda e elimina o lamento pela trans-realização do desejo.

 

Por tudo isso, é ainda a negatividade [dos aspectos existenciais] que move o poeta quando ele, com tanta frequência, se rebela contra o estabelecido — seja pela natureza, seja pela sociedade: Ele manifesta o desejo por uma situação que ainda não existe. E isso é tão poético que acabou identificando a poesia com a rebelião, ao dizer-se que o poeta é — por natureza — um rebelado. Mesmo quando a realidade se modifica no sentido do seu desejo, esta nova realidade ainda não é exatamente a que ele idealizou e, por isso, ele prossegue em sua luta — luta pela conquista de um bem, luta pela superação de uma perda. Esta luta não tem fim. Quando ele se dissesse satisfeito, sua missão estaria liquidada. ...

 

Em suma: A poesia é uma substância imaterial identificada originariamente com a transitividade do ser do mundo — o que, por uma reação de atração ou repulsão, sugere ao homem uma atitude de resposta, sob a forma de poema.

 

Ou, numa formulação condensada para a literatura: Poesia é a transitividade do ser do mundo; poema é a verbalização estetizante da poesia.

 

 

Lyra, Pedro. Conceito de Poesia. Editora Ática, São Paulo, 1986. Páginas 5; 78-88.

 

 

 

 

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Cláudio Carvalho Fernandes e Pedro Lyra
Enviado por Cláudio Carvalho Fernandes em 13/11/2024
Código do texto: T8195715
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