Sentimento de posse *
Tenho um quintal e é como se não o tivesse.
Ver o quintal é diferente de sentir o quintal.
Tem relva, rosas, e fruta. E tudo lá é longínquo,
e mais vivo do que eu.
Sei que ele existe,
que cresce, morre, entardece e se orvalha,
mas é um todo exterior a mim que cresce,
entardece e se orvalha longe do coração.
Sei que as rosas cheiram, e como é bom cheirá-las.
Sei que a erva pulula na madrugada, e como é bom calcorreá-la aos primeiros raios.
Sei que a fruta amadurece num cabaz de oferenda, e como é bom o gosto da natureza
a desfazer-se na boca.
Sei que as ervas daninhas fazem parte de todo o crescimento, e saber escolhe-las,
arrancar-lhes a raiz, separá-las da luz, é um bom dom.
Sei tudo, mas o coração pára-me.
Não separo a luz da escuridão com a facilidade dos jardineiros.
O meu quintal nunca deixará de ser quintal mesmo que não entre nele;
meu é apenas um sentimento de posse.
O coração está mais próximo das estrelas que do meu quintal.
Viaja mais no vazio que na terra, e alimenta-se mais de sonho que
de coisas concretas.
O meu quintal é tanto mais exterior a mim, quão mais o vazio me enche e alimenta.
Olho-o, entristeço, e recuo.
E aquilo que era vácuo encho-o agora de palavras.
Tenho a (vã?) esperança que as rosas cheiram as rosas,
que a relva escorre o orvalho entre as folhas,
que os frutos se abrem naturalmente à vista uns dos outros,
e que as ervas daninhas fazem paz com a terra.
Eu sou apenas eu, minúsculo na contemplação de tanta vida,
e a única coisa que me alegra, e sei-o do fundo do coração,
é que a beleza do meu quintal é independente
do que quer que eu seja.
*