O FIGURINO DA VIDA
Estancou frente o guarda-roupa.
Tantas e não tinha ideia do que vestir. Via desordem e sentia desânimo. Aquele sonho não saia da sua cabeça. Já se sentia triste pelo fato real e o sonho reiterado só aumentava a sua angústia. No fim, pegou uma muda de roupas e vestiu-se.
Sem que percebesse, saiu de casa totalmente em tom escuro. Camisa cinza-chumbo, terno e sapatos pretos. Esqueceu-se da gravata. O tom refletia o seu estado mental, e a ausência da gravata, a necessidade de livrar-se do problema.
Nunca achara as pessoas tão mal vestidas. Nada combinava com nada. Soavam-lhe ridículas. Não ria por total ausência de graça.
Chegando ao trabalho, notou alguns colegas em tons coloridos e uma aparência feliz. Tascou um “bom dia” praticamente para si mesmo e ocupou o seu espaço. De soslaio, notou um copinho de café se aproximando. “Bom dia”, sua companheira de mesa contígua estendeu-lhe o copo com um sorriso que o fez se sentir ofendido por tanta alegria. Soprou um “obrigado” e apossou-se do copo sem tentar retribuir o sorriso.
O “posso ajudar em alguma coisa?” foi a gota d’água. “Tá tudo bem. Só tô preocupado” foi a resposta que lhe veio de chofre, acompanhada de um mísero sorriso entre dentes. “Quando vão me deixar em paz?”, pensou, impaciente.
Mergulhou-se no trabalho, agora livre dos inoportunos. Buscou nos seus registros o fio da meada e prosseguiu dali. Entretanto, impossível não participar por tabela das conversações. Os colegas falavam de fatos, de sonhos, de vontades, de comida, de viagens, de fofocas, de tudo enfim. Não sabia se sua raiva provinha do fato da conversação atrapalhar a concentração ou da inveja da alegria deles.
Deu um jeito de sair para o almoço sozinho. Apressou-se para fugir dos companheiros de self service. Precisava de sossego. Talvez uma refeição caseira num restaurante mais afastado e aconchegante o relaxasse.
Foi observando as pessoas e suas roupas e jeitos. Os mesmos traços dos seus amigos de trabalho. Mesmo aqueles que estavam sozinhos deixavam transparecer algum sentimento.
Ao final do dia, saiu sem ser notado. Chegou em casa acompanhado do seu problema. Esqueceu-se de tudo que vivenciara e fechou-se no seu submundo. Sem perceber, despiu-se das roupas e do dia, trancou-se no chuveiro e lavou-se do mundo.
Diferente dos últimos dias, não se lembrou dos sonhos. Parecia que sequer dormira. Descobriu que não lembrava nem do momento em que se deitou. Pior: pressentia alguma coisa. “Putz! Que mais pode acontecer?” Sentado na cama, cabeça entre as mãos, cotovelos sulcando os joelhos, pé sobre pé, esforçou-se para não se deitar de novo.
Levantou-se num sobressalto ao toque do telefone fixo. No terceiro, correu para atender. Gelou ao ler no visor quem ligava. “Alô”, atendeu meio não querendo. “Bom dia!”, a voz conhecida respondeu numa alegria incompreensível. “Tudo resolvido. Não temos mais com o que nos preocuparmos. Depois conversamos melhor.” Depositou o fone na base lentamente, confuso, praticamente feliz.
“Yes!”, vibrou. Pulou sobre a cama, chutou o travesseiro, jogou-se estatelado. “Ah, então era um bom pressentimento... bom não, ótimo. Estou livre!” Estava feliz como achou que jamais ficaria novamente. Fez um café da manhã de rei.
Estancou frente o guarda-roupa.
Desta vez, sabia exatamente o que vestir. Luz, cores, alegria. Separou a roupa que traduzia a sua felicidade: terno salmão, camisa branca, gravata preta de seda com listras vermelho e vinho, sapatos num marrom avermelhado. E perfume, claro.
No caminho para o trabalho observou ao redor. Nunca vira pessoas tão bem vestidas. As roupas combinavam com os semblantes, como descrições alegóricas, pinturas. Acordar de bom humor mudou a sua visão do mundo.
Sua colega de trabalho felicito-o por ter “recobrado a consciência” ao chegar “luminoso e perceptível”. Foram almoçar juntos e conversaram sobre a vida em sociedade, mais precisamente a pessoa e a roupa, a descoberta dessa associação tão rotineira, mas até então imperceptível.
“Por qual motivo você acha que nos vestimos?”, ela perguntou, desafiadora. “Para não nos mostrarmos”, ele respondeu praticamente sem dúvida. “Penso que o primeiro motivo seja a proteção pura e simples do corpo em razão das intempéries naturais; depois a cobertura da nudez, até por conta do lance do pecado original”, ela opinou. “Pensando dessa forma, você tem razão. Há roupas para múltiplas situações que requerem menos ou mais proteção do corpo”, ele falava como se estudasse o assunto há tempos, e completou “Mas me fascina agora a escolha da roupa. Pegamos no armário e as vestimos, pura e simplesmente?”
Ficaram um tempo observando as pessoas. Ele agora observava com ânimo diferente. Seu olhar era de curiosidade, de estudo. Procurava se colocar no lugar da pessoa, desta vez. Ela também observava curiosa, mas porque jamais parara para pensar sobre isso, lembrando que sempre escolhera a roupa com base no impacto que queria causar.
Depois de muita observação e análise, entreolharam-se como se tivessem matado a grande charada.
“É isso! As roupas são nosso figurino do dia a dia. Nos vestimos de acordo com o papel que encenaremos. Nunca percebi isso. Fantástico!”, ela, entusiasmada. “Exatamente. Encenamos tipos diariamente, conscientes ou não. Para mim sempre foi um vestir roupas. Nunca notei essa questão do teatro da vida. É surpreendente. Mas será que não estamos divagando?”, ele preocupado com eventual exagero. “Olha. Neste momento não sei dizer cientificamente, pois estou empolgada demais com tudo isso. Sermos personagens diários soa estranho, ainda mais se pensarmos na vida como uma ilustração, a roupa ilustrando a vida. E então... qual papel encenamos hoje?” “Como nada é por acaso, hoje desempenhamos o papel de filósofos”. Riram e se olharam mais demoradamente, daquele jeito que deixa transparecer que a amizade travestiu-se de paixão.
Decidiram encenar o papel diário de namorados. Não demorou muito, resolveram utilizar o mesmo guarda-roupa e contracenar no mesmo palco intimista.