A bonequinha, vai?

Estou em processo final de mudança. No apê antigo que está sendo pintado para satisfazer cláusula contratual, após quase cinco anos de inquilinato, restaram um poucos bens ou objetos a serem recolhidos oportunamente. Os mais conspícuos são umas garrafas de cerveja que se acomodam melhor numa dessas sacolas de supermercado, e uma estatueta de Buda, deitado, de madeira, que ficou para ser trazida no automóvel.

A lixação das paredes cobriu-a de espessa camada de pó, sem contudo, tirar-lhe a dignidade do olhar sereno, das orelhinhas compridas - pra baixo - e do brilhozinho dos paetês que lhe ornam a orlas das veste. Em mudanças anteriores essa estatueta já quebrou os pés por um par de vezes, logo recolados, dando mostra de minha escassa aptidão ao artesanato. Da primeira vez Lina ainda me repreendeu por não ter tomado o cuidado de transportá-la ao colo, conforme ela própria me advertira acho que de Cingapura a Jacarta, coisa de hora e meia de voo. Da segunda, já pareceu mais conformada com os calcanhares de Aquiles da estatueta e meus.

Os dois rapazes encarregados da pintura, Iago e João Vítor, bem jovens, longilíneos e bem tatuados, estão fazendo um bom trabalho, ainda que lento para meu gosto e bolso. Mas a uma altura dessas, melhor aceitar, que menos deve doer.

Mais por folga de ancião, peço a um deles para ajudar-me com a peça até o carro e sou prontamente atendido. Faço mais um tour pelo apartamento vazio, e mais um uso - derradeiro, quiçá, do vaso sanitário - e quando retorno à sala, já em moção de despedida, o mais próximo ao Buda da Tailândia ainda me pergunta:

- E a bonequinha, vai?

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 13/08/2019
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