As idiossincrasias sintáctico-semânticas do clítico –se nas diferentes construções (uma visão generativa transformacional)

Observem-se as frases abaixo:

(1) (a) Aqueles artigos publicaram-se no “Jornal Notícia”. (b) Morreu-se muito na Líbia.

(c) A caligrafia da Joana lê-se bem. (d) O barco afundou-se.

(2) A Monasse foi-se embora.

Em todas as construções que figuram em (1), a relação gramatical de sujeito é desempenhada não pelo argumento externo, mas pelo argumento interno directo do verbo. O que nos leva a classificar este argumento como sujeito não é a posição por ele ocupada, mas sim a concordância entre o argumento e o predicador verbal. Como atesta o contraste gramatical em (3), em que operamos a movimentação do constituinte com a função gramatical de sujeito, tendo resultado numa frase gramatical (cf.3a), enquanto, colocando a expressão nominal no singular, com a forma verbal no plural, mesmo mantendo o esquema relacional (SV), o resultado será agramatical, (cf. 3b).

(3) (a) Publicaram-se aqueles artigos no “Jornal Notícia”. (b) *Aquele artigo publicaram-se no “Jornal Notícia”.

Em qualquer uma das frases em análise não é possível realizar lexicalmente o argumento com a função de agente, ou seja, o agente do estado de coisas denotado não possui matriz fonética. Sendo o papel temático externo do verbo recebido pelo clítico “se”, que absorve o traço casual do verbo, tornando este incapaz de legitimar o argumento interno directo com o caso acusativo. Facto que encontra fundamento na generalização de burzio, segundo a qual, o verbo atribui caso acusativo ao seu objeto se e só se atribuir papel temático externo a um argumento (visível) foneticamente realizado ou à categoria PRO.

A pesar de as propriedades acima arroladas serem próprias das construções passivas, nem todas as construções transcritas em (1) têm uma diátese passiva. Pois só a primeira (1a) pode ser considerada uma frase passiva, neste caso, passiva de se ou passiva clítica (usando a expressão proposta por Peres e Móia (1995) em cujos trabalhos nos baseamos até aqui). Este facto observa-se na possibilidade de a parafrasear na diátese activa, verificando-se a constância do das funções semânticas dos constituintes movidos.

Até aqui não incluímos na discussão a construção (2), em que o clític “se” é apenas, de acordo com Cunha e Cintra (2005), uma PALAVRA EXPLETIVA, usada << com verbos intransitivos para realçar a espontaneidade de uma atitude ou de um movimento do sujeito)>>.

Voltando para as construções (1), refira-se que a frase (1b) está na diátese activa (e não passiva, como parece), em que o clítico “se” aparece apenas como símbolo de indeterminação ou interpretação arbitrária do sujeito. Podendo isso ocorrer apenas com verbos inergativos ou inacusativos (ergativos), tidos como intransitivos na gramática tradicional luso-brasileira, ou ainda com verbos transitivos tomados intransitivamente.

Pensamos – tal como está implícito nas propostas de Mateus et al (2003) – o sujeito indeterminado ou de referência arbitrária configurado sintacticamente pela presença do clítico “se” ocorre em certas construções que subcategorizam complementos oracionais, como se verifica em (4).

(4) Diz-se que vai chover hoje.

Na construção (4) o “se” tem uma interpretação temática do tipo agentivo atribuída pelo verbo (razão pela qual é cognominado “se” NOMINATIVO), realizando, portanto o caso Nominativo atribuído pelo núcleo funcional Flex. Pelo que é agramatical a frase em que a posição do especificador do núcleo do SFlex for preenchida por um SN-sujeito lexicalmente realizado (cf. (4a), senão o caso nominativo seria duplamente realizado, transgredindo o princípio de filtro do caso.

(4) (a) *ele diz-se que vai chover hoje.

Relativamente à construção (1c), é de salientar que se trata de uma CONSTRUÇÃO MÉDIA. Neste tipo de construção é obrigatória a presença de advérbios como “bem”, “facilmente” ou de SPs com valores adverbiais como “com mais prazer”, etc. sendo agramaticais frases como (4).

(4) *A caligrafia da Joana lê-se [-].

Ademais, o estado de coisas denotado nestas construções deve ser interpretado numa dimensão estativa, devendo, por isso, o valor aspectual dos predicadores verbais ser tipicamente imperfectivo, como atesta a agramaticalidade das frases (4a) e (4b).

(4) (a) * A caligrafia da Joana leu-se bem. (b) *Estes lenções lavaram-se com todo prazer.

Por último, o clítico “se” pode ocorrer também em variantes inacusativas dos verbos de ALTERNÂNCIA CAUSATIVA de mudança de estado, sendo de natureza ANTICAUSATIVA, como se vê em (1d).

(1d) O barco afundou-se (por si só /com a tempestade).

Nestas construções se a causa for externa não é intencional, e se for interna é realizada estruturalmente como um adjunto preposicional. É igualmente importante referir que nesta operação de redução lexical, a forma resultante tem propriedades INACUSATIVAS, pois o papel temático externo é suprimido e o verbo perde a capacidade de legitimação casual, não podendo, por isso, atribuir o caso estrutural acusativo ao seu argumento interno.

Bibliografia:

CUNHA, Celso e Lindly Cintra. Gramática do Português Contemporâneo. Lisboa, 2005 :pp 307-308.

MATEUS et al. Gramática da Língua portuguesa. Lisboa, 6ed. 2003: pp 509-537.

PERES, João Andrade, Telmo Moia, Áreas críticas da Língua Portuguesa, Caminho, Lisboa, 2ª ed. 1995: p 2015.

Mutxipisi
Enviado por Mutxipisi em 19/04/2016
Reeditado em 12/07/2017
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