"O BÊDADO E A EQUILIBRISTA" (os subliminares)

O Bêbado (1) e a Equilibrista (2)

(João Bosco e Aldir Blanc, 1969)

"Caía

a tarde feito um viaduto (3)

E um bêbado trajando luto (4)

me lembrou Carlitos

A lua (5)

tal qual a dona do bordel (6)

Pedia a cada estrela fria (7)

um brilho de aluguel (8)

E nuvens (9)

lá no mata-borrão (10) do céu (11)

Chupavam manchas (12) torturadas (13),

que sufoco

louco

O bêbado com chapéu coco

fazia irreverências mil (14)

Pra noite do Brasil (15),

meu Brasil

Que sonha

com a volta do irmão do Henfil (16)

Com tanta gente que partiu (17)

num rabo-de-foguete

Chora

a nossa pátria mãe gentil

Choram Marias e Clarisses (18)

no solo do Brasil

Mas sei

que uma dor assim pungente

não há de ser inutilmente

A esperança

dança

na corda bamba de sombrinha

E em cada passo dessa linha

pode se machucar

Azar (i),

a esperança equilibrista

Sabe que o show de todo artista

Tem que continuar"

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Sentidos subliminares (*):

(1) O bêbado representava os artistas, poetas, músicos e "loucos" em geral, que embriagados de liberdade ousavam levantar suas vozes contra a ditadura.

(2) A equilibrista era a esperança de democracia, um projeto de abertura política gradual, que a cada "eleição", a cada evento que incomodava os militares (passeatas, etc), tinha sua existência ameaçada.

(3) Um viaduto, obra do governo, caiu, desabou sobre carros e ônibus cheios de pessoas, matando muita gente. Na época, nada pôde ser noticiado nem as pessoas foram devidamente ressarcidas ou indenizadas (em Belo Horizonte, viaduto da Gameleira, década de 70).

(4) Referência aos militantes de esquerda que foram "sumidos" ou declaradamente assassinados sob tortura.

(5) A lua representa os políticos civis que se colocaram a favor do regime, a fim de obter ganhos pessoais. Eles "acreditavam" tanto na propaganda oficial, que se dizia que se um general declarasse que a lua era preta, eles passariam a defender tal tese como verdade absoluta. Em determinada época foram até chamados de luas-pretas.

(6) A Câmara de Deputados e o Senado foram algumas vezes comparados a bordéis devido aos negócios imorais que lá se faziam. É claro que os cidadãos indignados não podiam dizer claramente que pensavam isto, ou seriam no mínimo processados por calúnia, injúria, difamação e etc.

(7) As estrelas são os generais, donos do poder. Alguns deles nunca apareceram como governantes, preferindo manipular nos bastidores. Se contentavam com uns poucos privilégios astronômicos e umas ninharias de cargos de direção em estatais ou o poder de nomear umas poucas dezenas de parentes e correligionários em empregos públicos.

(8) O brilho de aluguel era, como mencionado acima, os ganhos pessoais e até eleitorais obtidos pelos civis que aceitavam ser marionetes. Alguns destes civis cresceram tanto que altrapassaram em poder os seus "criadores" fardados.

(9) Os torturadores são aqui comparados a nuvens, pois eram intocáveis e inalcançáveis.

(10) O mata-borrão é um instrumento antiquado destinado a eliminar erros, borrões na escrita. O DOI-CODI, nossa temível polícia política da época era o mata-borrão do regime (instrumento antiquado destinado a eliminar erros).

(11) As prisões eram inalcançáveis ao cidadão comum, inacessíveis, por isso a comparação com o céu.

(12) Os rebeldes são comparados a manchas, ou seja um erro na escrita, uma coisa fora da ordem, uma indisciplina.

(13) Referência à tortura aplicada aos militantes de esquerda, que ocorria às escondidas. O regime jamais admitiu que torturava pessoas, porém nunca houve punições aos casos que conseguiam alguma divulgação, apesar da censura à imprensa.

(14) Os artistas nunca se calaram. Esta música, ele própria é uma das irreverências.

(15) Um tema recorrente nas músicas da época. A volta das liberdades políticas é comparada ao amanhecer, bem como a ditadura é comparada à noite.

(16) O Henfil (Henrique Filho) era um afiadíssimo cartunista político muito visado pelo regime, bem como seu irmão o Betinho, que no governo Fernando Henrique organizou o programa de combate à fome. Os dois eram hemofílicos e morreram de Aids.

(17) Referência aos exilados políticos.

(18) Maria é a esposa do operário Manuel Fiel Filho morto sob tortura nos porões do DOI-CODI (SP) em janeiro de 1976 e Clarice é a esposa do jornalista Wladimir Herzog, também morto sob tortura, no DOI-CODI (SP) em outubro de 1975.

(i) Uma expressão de desprezo pela sorte, de ausência de medo. Após receber uma advertência sobre algum perigo que desprezamos podemos dizer: "Azar!", ou "Dane-se!" ou "Não estou nem aí!" ou ainda "E daí?!"

(*) Extraídos (sob o título de "Comentários Políticos", aqui transcritos, "ipsis verbis") do site: http://www.ponto.altervista.org/Musica/.html

Lobo da Madrugada
Enviado por Lobo da Madrugada em 01/05/2008
Código do texto: T970236
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