COM SUA LICENÇA, CHICO!
COM SUA LICENÇA, CHICO!
Tarcizio Alencar
Desenvolvimento da letra “Trocando Em Miúdos”, do Chico Buarque de Holanda
“Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim...”
É o misticismo presente. A força foge das nossas percepções,
porque de nossas condições nós conhecemos: é preciso, então, apegar-se a algo que não conhecemos profundamente, então, o Senhor do Bonfim serve perfeitamente.
“...não me valeu,”
É claro que não valia. Se eu não basto a mim, se não resolvo os meus
problemas, virá o Senhor do Bonfim, descer das suas alturas,
para consertar a nós dois?
“mas fico com o disco do Pixinguinha, sim,...”
O romantismo, as grandes paixões, os grandes desenganos.
Vidas vividas nas grandes canções. Sempre servem.
Acompanham meus grandes momentos.
Sempre haverá um (momento) adequado para elas.
“...o resto é seu.”
Quando se perde o amor, quando se sofre uma desilusão.
Quando o coração, que pulsou tão forte por alguém, definha, triste,
outra vez desenganado ou, pelo menos, desencontrando todas as nossas
convicções, que importa o “resto”?
São fragmentos materiais de um amor que se foi.
“Trocando em “miúdos” pode guardar, as sobras de tudo que chamam lar...”
Lar! Um conjunto dos nossos anseios. São detalhes. São pedaços da nossa imaginação. Pensamos que é bom assim e assim o fazemos. São nossos “cacos”, nossos retalhos. É o corpo em que a alma é o nosso amor.
“as sombras de tudo que fomos nós,...”
Lembra-se? Nós fomos “aquilo” que jamais se acabaria. Aquele amor que, igual não existia.
Era infinito, posto que era chama e, como chama, se apagou.
“As marcas do amor nos nossos lençóis...”
Que amor louco aquele nosso! As marcas, eram só as marcas.
O último sinal de toda aquela nossa arrebentação, daquele desejo louco,
o nosso, de mostrarmos, um para o outro, o quanto queríamos,
um do outro; o quanto queríamos dar, um para o outro.
Nosso lençol, nosso quarto, testemunhas mudas das nossas muitas
noites guardadas, cúmplices de tudo que éramos nós.
“As nossas melhores lembranças...”
E, de repente, paro e me lembro de nós dois, em tantos detalhes...
dia a dia, passo a passo, cada momento... e riu: de tantas felicidades
vividas e choro: por tanta felicidade perdida.
“Aquela esperança de tudo se ajeitar...”
E ai, é o começo do fim. Quando o amor começa a se acabar, nada se ajeita.
É o desespero. É se agarrar tentando manter uma chama que se acaba;
Tentar manter vivo um amor que existiu, que foi bom, mas, que não é mais!
“...pode esquecer!”
Esquece! Esquece tudo. Esquece tudo que fomos nós, esquece as marcas
de amor nos nossos lençóis, esquece que nos rimos, as vezes que choramos; nossos planos, que foram tantos. Esquece!
Esquece ou, pelo menos, tenta esquecer e eu tentarei pensar que esqueci.
“Aquela aliança...”
Que me custou prestações e preocupações: que pensei, no momento que lhe dei, que era como o nosso amor: uma circunferência: não tinha começo e não tinha fim. Enganei-me! Como uma circunferência, o nosso amor era delimitado.
“... você pode empenhar, ou derreter,...”
Empenhando (na CAIXA), lhe custa fila e cautela. Derretido, lhe renderá até, alguns “cobres”. Não! Não será você que dará este fim ao símbolo do nosso amor; sei que o guardará em sua caixinha de joias.
“Mas devo dizer que não vou lhe dar, o enorme prazer de me ver chorar...”
Até que foi bonito chorarmos juntos, algumas vezes, mas, agora, não!
Se choro hoje, é das tentativas frustradas de lhe dizer tantas coisas
que você até achou bonitas, mas, não entendeu e hoje, no momento que
chegamos, não preciso mais que você me veja chorar.
“...nem vou lhe cobrar pelo seu estrago...”
Estragou? Nem sei lhe dizer! Se estragou ou, se mais ou se menos, não sei se faz diferença. Foi “estrago” a mais. Talvez bom, porque mais aprendi, talvez ruim, porque acredito menos.
“...meu peito tão dilacerado...”
Está! Disto não tenho dúvidas. São 10, são 15, são 20, 40 50... tantos anos e muita coisa mudou.
Mudou o que penso, mudou o que sinto, mudaram as cabeças, mudou o mundo e eu, acho que não acompanhei.
E hoje, para recomeçar, falta pé, falta chão.
“...aliás, aceite uma ajuda do seu futuro amor...”
Se da aliança, “cobres” não levantou,
“...pro aluguel,...”
de ajuda vai precisar. Se a vida é cara e quem lhe foi “caro”, já se foi,
aceite de quem vier e pode ser o começo de um “novo e grande amor”.
“...devolva o NERUDA que você me tomou...”
Tomou! Tomou sim e, ainda que fosse autografado, ainda assim, estaria
bom se fosse só por aí. Mas, você me tomou e me tomou muito mais do que um exemplar de um dos meus poetas: você tomou a minha poesia.
Você que foi motivo de eu escrever mais, levou este (o motivo) e os
demais: todos que já antes eu tinha e que não encontro mais.
“...e nunca leu...”
Não leu nada! Nem do poeta nem da minha cara, das lágrimas que nela correram, das súplicas, das iras, das paixões e dos desenganos. Foi analfabeta da alma e hoje é solitária no amor.
“...eu bato o portão sem fazer alarde...”
Não! Não vou “sujar” na saída. Tantos alardes já houveram...
fecho bem devagar e vou em busca da paz. Da paz há tanto perseguida
e que as vezes penso que não vou encontrar.
“...eu levo a carteira de identidade, uma “saideira”, muita saudade...”
No porta-cédulas guardei a identidade e a saudade; a dor de partir e a vontade de ficar, sufocada no gole daquela YPIOCA há tanto guardada, que aliás, deixo também, para quando passar por aqui, trocar, por mais uma tragada, a lágrima que pensar em cair.
“... e a leve impressão de que já vou tarde.”