A carne é forte

Os anos eram os cinquenta, do rádio, do cinema, do teatro até...E naturalmente dos albores dos romances que se prenunciavam nas salas de aula, nos passeios no jardim, e até na igreja mas que, inevitavelmente para a rapaziada, ainda não iniciada, se concretizava sob as vistas e até com a cumplicidade da saboneteira...

E havia aquela menina tão cobiçada, flor em botão, filha do alcaide da cidade, de quem se esperava ao menos, e ao máximo, por um olhar de compaixão a almas torturadas de desejo... Mas nada feito. Se o pai era vigilante e severo, o vigário local o era muito mais, exigindo compostura no trajar e determinando comportamentos em qualquer lugar.

Esse estado de coisas, entretanto, tinha o seu lado benéfico para a sociedade, aparentemente, ao menos, pois os jovens mancebos começaram a frequentar mais e com que fervor os atos religiosos e as procissões. E o confessionário, para as faltas veniais, já que as mais graves eram guardadas para mais adiante, sine die...e por justificadas razões. Penitências pesavam e humilhavam.

A princesinha já nascera e ia vivendo sem contestar. Os olhares cobiçosos que o seu todo recebia, cada vez mais a cada dia lhe mimavam e animavam o ego, enchendo-a de certezas.

Demais, cantava no coro. Voz angelical, e razão maior do afluxo de guapos à missa das nove. Antes dedicada à crianças, que cresciam em fé e vontades...lotando a matriz daquela pacata cidadezinha das Gerais.

Até que um dia, no ápice de uma missa solene - o vigário compungido, no ato da consagração, foi testemunha ocular da mais diabólica tentação: uma das tábuas do piso do coro se rompeu e o corpo da sílfide, justamente o dela, literalmente vazou, milagrosamente salvo pelos seus quadris que, afortunadamente já se iam avolumando na voragem da perfeição...

Antecipando o desastre pecaminoso de uma visão das angelicais pernas que baloiçavam, o vigário advertiu com todo o vigor de sua fala, e sua fé:

- Quem se atrever a olhar para trás, possuído pelo insidioso Satanás, receberá semelhante maldição à da mulher de Lot, e ao invés de se transformar em estátua de sal, perderá irremediavalmente a visão...!

Num átimo, um galalau de seus dezessete anos, cutucou com o cotovelo o amigo de tantas narrativas e desventuras, e, tapando um olho com a mão, segredou-lhe, voltando-se para trás:

- Eu acho que vale a pena arriscar uma vista...por Deus do Céu...

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 22/12/2020
Código do texto: T7141333
Classificação de conteúdo: seguro