Aquilo que as borboletas não te contaram


- Que silêncio, até parece que morreu alguém aqui! – Renan exclamou, ajeitando-se no banco de passageiro do carro de Leo.

Faltavam poucas horas para chegarem a casa da avó de Marine e Renan.

De forma breve, mas significativa, Leo olhou para a garota pelo vidro retrovisor.

- Sério! Vocês brigaram? – Ele insistiu, chateado. E olhou para a prima. – Como é que você consegue brigar tanto com o Leo?

Marine, em resposta, simplesmente revirou os olhos.

“Como é que você consegue brigar tanto com o Leo?” – Ela repetiu mentalmente a pergunta feita por Renan. “Esse imbecil pensa que esse outro é um santo? Mas que inferno!” – Colocou os fones no ouvido e abriu um aplicativo de música. “Qualquer coisa é melhor do que ouvir esses dois idiotas!”

Fechou os olhos por alguns minutos e logo descobriu que estava cansada demais. Adormeceu no banco de trás do carro.

- Marine? – Ela sentiu uma mão em sua perna, ao abrir os olhos, viu que era Leo. – Está com fome?

- Não.

- Renan foi na lanchonete pedir um lanche.

- Ah! – Coçou os olhos, sonolenta e se ajeitou no banco. – Estamos chegando?

- Estamos bem próximos.

- Ótimo.

- Marine?

- O que é?

Ele abriu a boca duas vezes, mas a frase a ser dita não conseguia ser pronunciada.

- Esquece.

Renan voltou ao carro com duas sacolas cheia de lanches, embora Marine estivesse faminta, manteve-se quieta, ouvindo música, sem ter vontade de participar da conversa dos dois amigos.

(...)

Para Marine conhecer a casa da avó materna fora uma experiência um tanto quanto tensa e porque não dizer, intensa. Sabia que pertencia aquele lugar. Era a casa que a sua mãe e sua tia cresceram. Ela devia sentir algo por estar ali. Devia.

Ao ver sua tia, ela a abraçou, desesperada. Era um rosto amável, tranquilo e familiar. A avó vivia numa casa simples, mas bem decorada e com um toque de interior. Sem todas aquelas parafernálias de cidade grande. O rádio era antigo, comprado por seu avô há muitos anos. Foi um grande companheiro do homem, até mesmo em seus últimos momentos de vida.

- Como você está, meu amor? – Lana perguntou, notado a visível tristeza no olhar da sobrinha.

- Estou bem tia. E você?

- Estou bem também. E aí, Tico e Teco! – Abraçou o filho e depois o amigo. – Como estão?

- Eu estou legal véia e você?

- Me respeita menino.

- Eu estou bem, tia! – Leo sentou-se no sofá, parecendo à vontade. Marine era o único peixe fora d'agua do lugar.

Lana, percebendo o desconforto da garota, a puxou para a cozinha.

- Eu sei que você não está bem. Sei, inclusive, que não gostaria de estar aqui, mas faça isso por mim. Sua avó não tem muito tempo de vida.

- Ela está no quarto?

- Sim.

- Posso vê-la? – Lana assentiu. As duas seguiram rumo ao quarto de Lisandra, a avó de Marine. Ver a avó de cama trouxe na garota diversos sentimentos, mas nenhum deles fora positivo.

Leo observou Marine entrar no quarto torcendo para que esse encontro não causasse nela nenhum tipo de dano emocional. Renan, ao seu lado, parecia completamente inerte ao que acontecia com a prima.

- Renan?

- O que?

- Você sabe que esse encontro não fará muito bem a Marine, não é?

- Nada faz bem a Marine, Leo. Nem ela faz bem a si própria. – E riu, alto. Leo teve vontade de socar o amigo, mas manteve-se parado. – Relaxa, ela vai ficar bem. Ei, vamos dar uma volta?

- Vamos.

Os dois voltaram mais tarde, no início da madrugada. Leo tinha tomado algumas cervejas e sentia o álcool mover suas ações. Renan, completamente bêbado só conseguiu chegar em casa e encontrar o caminho de um dos quartos de hospedes. Ele foi para a varanda da casa, precisava fumar um cigarro e pôr as ideias em ordem. Foi nesse momento que encontrou Marine sentada na escada, frente ao grande lago que fechava a casa da família dela.

- Ei. – Leo a cumprimentou, tirando o maço de cigarro do bolso. Ela o olhou, chorosa. Automaticamente desistiu de fumar. – O que foi?

- Ela me chamou de Letícia. – Contou Marine, perdida em seus próprios pensamentos. Leo sentou ao seu lado, segurando sua mão. – Depois, quando minha tia disse que eu era a filha, ela me pediu perdão.

- Perdão pelo o que?

- Por não ter cuidado da saúde mental da minha mãe quando ela foi estuprada na adolescência, nem ter cuidado dela já adulta e por não ter sido presente quando perdi meus pais.

Leo a abraçou, desesperado. A cada fungada de Marine, ele a apertava mais em seus braços. Não queria vê-la daquele modo. Não queria que ela sofresse.

- Shh... Calma.

- Por que, Leo? – A dor na voz de Marine era perceptível. Aquilo o feriu também. Acabou absorvendo a dor dela. – Por que a minha mãe morreu me odiando? Por que minha irmã morreu? Eu não queria ter que ficar para contar a história! E meu pai? – Ela olhou para o céu escuro e estrelado. – POR QUE O MEU PAI SE FOI? Ele sabia que eu não podia ficar sem ele!

- Eu não sei, meu amor. – Ele nem notou a forma que a chamara. Beijou sua cabeça, passando pela testa, até que os lábios se encontraram. Leo segurou o rosto dela, afetuosamente. Marine sentou em seu colo, colocando a mão dele em suas costas. A respiração sem ritmo de Marine se misturando com a dele. – Não chora mais, por favor... Eu estou aqui com você.

Ela deitou a cabeça no ombro dele, respirando o seu cheiro, ali pertinho do pescoço. Tocou seu rosto, suavemente e deixou um beijo em sua testa. Havia tanto a ser dito ali. Marine sentia em Leonardo o cansaço de lutar contra seus próprios sentimentos, mas o mínimo de sua luta ainda o fazia se afastar dela. E ela não o queria longe.

- Eu quero ir embora, Leo.

- Eu sei, nós vamos amanhã à tarde. – Ele tocou o cabelo dela, e então se olharam. – Prometo.

- Obrigada.

- Pelo o que?

- Por estar aqui.

- Eu sempre estarei com você.

- Não me promete isso, Leo. – Ela o segurou pelo rosto novamente. – Não me promete isso. Não me prometa nada que você não pode cumprir.

Marine tentou se levantar, mas Leo a puxou novamente para seus braços. Era angustiante e doloroso ver como ele a queria por perto, mas não queria demonstrar o que sentia. Os dois se abraçaram com muita força. Leo queria, através do gesto, dizer o quanto sentia o mesmo por Marine, mas ela precisava ouvir. Ele não sabia como falar, não sabia como lidar. Havia um imenso abismo que os afastava.

- Me solta, por favor? – Pediu, no pé do ouvido dele. A voz novamente chorosa. – Você está acabando comigo, Leonardo. Isso que você está fazendo está acabando comigo! – Ela o obrigou a olhá-la nos olhos. – Fala alguma coisa.

- Você está certa. Eu não posso prometer o que não posso cumprir. E eu sinto muito por tudo isso.

Não era o que ele realmente queria falar e Marine sabia disso. Ela o olhou por um longo tempo, em silêncio. Automaticamente ele a soltou, não poderia mais prendê-la naquilo. Era errado. Ela merecia muito mais do que aquilo, não alguém como ele. Preso a sua própria escuridão emocional.

- Até quando você vai me afastar assim de você, Leonardo? – Ela perguntou, parando próximo a porta.

- Eu não sei.

Ele a olhou a ponto de ver Marine balançando a cabeça em um não, totalmente desolada. Quando ela entrou, o deixando sozinho, o rapaz respirou fundo, segurando a formação de um nó na garganta. Fazia muito tempo que Leo não chorava, e ele não queria fazer aquilo, não ali, na casa dos parentes de Renan. Não ali, perto de Marine. Ele engoliu seco e se levantou, olhando para o céu estrelado que iluminava a madrugada. Demonstrar sentimento era um território que Leonardo pisara duas vezes, e nas duas vezes houve perdas. Primeiro a sua mãe, depois Cristina. Ele não queria que Marine fosse mais uma perda. Quando tomou caminho para entrar na casa, um furacão de cabelos escuros retornou, o encurralando contra a parede.

- VOCÊ VIVE NUMA ZONA DE CONFORTO, SABIA? VOCÊ SE PROTEGE DIZENDO QUE NÃO QUER SENTIR POR TUDO O QUE PASSOU COM CRISTINA E COM AS SUAS PERDAS! EU SEI QUE VOCÊ SENTE ALGO POR MIM, EU SINTO ISSO LEONARDO! VOCÊ NÃO VAI FUGIR DISSO! – Ela segurou o rosto dele, que não resistiu a deitar a cabeça no ombro dela. – OLHA PARA MIM! – Ele obedeceu. Era o castanho cheio de perdas olhando o azul cheio de esperança. – ZONAS DE CONFORTO NEM SEMPRE SÃO DE FATO, CONFORTÁVEIS E... – Leo segurou o rosto dela, tapando sua boca com os dedos. Marine tentou empurrá-lo, mas então ele a beijou, totalmente descontrolado. Teve um soco na parede que foi dele, depois ela o acolheu num abraço totalmente protetor e deixou um monte de beijos em seu rosto, por fim, capturando seus lábios de modo apaixonado. Eles se amavam.

A eletricidade entre eles fazia as pernas de Marine fraquejaram. Leo respirou fundo, controlando seus próprios impulsos e o desejo de arrancar a roupa dela ali mesmo. Abruptamente, ele se afastou, ficando de costas para ela. A primeira lágrima desceu por sua bochecha, mas ele tratou de limpá-la. Não podia chorar.

- Eu estou apaixonada por você.

- Por favor, para!

- Você é um covarde, Leonardo. Você é um covarde preso à sua zona de conforto.

Antes que Marine pudesse ir embora, Leo a puxou novamente contra a parede. Os olhos dele brilhavam, ameaçando chorar. Nem ele de fato sabia porque não conseguia chorar. Era por causa de seu pai que o abandonara depois da morte da mãe? Era por Cristina que fizera chacota de seus sentimentos? Era por tudo isso?

- Você não sabe... Você... – Ele fungou alto, segurando as lágrimas. Já Marine tinha o rosto totalmente banhado por suas lágrimas. – Você não sabe as coisas que eu passei na minha vida, Marine. Você... – Ela encostou a testa na dele, deixando que suas respirações se misturassem. – Eu não posso perder você.

E finalmente aconteceu. Leonardo deu outro soco na parede, antes de deslizar pelo chão, chorando. Não aguentava mais. Marine estava certa, Missaire também. Todas estavam. A zona de conforto de Leonardo era não sentir, mas ele não podia mais fingir não sentir nada. Ela sentou ao seu lado, o envolvendo num abraço cheio de amor. Era de Marine demonstrar amor. O coração de Leonardo apertou ao lembrar da mãe. A mãe dele também era de demonstrar muito amor.

- Como é que você não pensa em desistir? – Perguntou ele, no pé do ouvido dela. – Como é que você simplesmente não tem mais medo?

- Eu tenho medo, Leo. Eu tenho muito medo de novas perdas, mas sei que as coisas acontecem por algum motivo. Depois de tudo o que eu passei, também poderia ter me fechado numa redoma de vidro e não permitir mais que ninguém entrasse. Eu até fiz isso, mas não adiantou.

- Eu sinto tanta falta da minha mãe. – Marine tocou a mão dele, até que seus dedos se entrelaçassem. – Eu sinto muita falta dela. Eu me sinto muito sozinho, Marine.

Ele fungou novamente, mas não se importou de limpar as lágrimas que caiam sem parar. Sentiu alívio por poder demonstrar algo sem sentir vergonha daquilo. Depois de tantas pessoas o fazendo se sentir vulnerável e frágil por sentir, estar com Marine era ter segurança e amor. Era poder arrancar a máscara da tranquilidade e ser ele mesmo.

- Eu também me sinto sozinha, Leo. Muito. – Ela limpou seu rosto e selou seus lábios aos dele. – Mas nós podemos ser sozinhos juntos. – Ele sorriu ao vê-la sorrir também. – Dá menos trabalho.

- É, eu devo concordar.

- Está quase amanhecendo, sabia? – Ela balançou a cabeça, assentindo. Os dois então olharam o horizonte, o único espectador daquilo que acontecia entre Leonardo e Marine. - Você entende que falar para o Renan sobre a gente resultará em muito problema. Eu preciso me resolver com a Cristina antes.

- Tudo bem.

Ela se deitou no peito dele, respirando o seu cheiro. Tudo ali trazia paz e conforto, tudo ali se conectava e se completava. Leo não se sentia mais sozinho, tinha Marine. Marine nunca mais se sentiria tão só, pois tinha Leo.

Tudo ali era amor.

Tamiris Vitória
Enviado por Tamiris Vitória em 26/07/2019
Reeditado em 31/07/2022
Código do texto: T6705463
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