Capítulo 01
Homens fortemente armados acompanhados de um tanque de guerra se posicionaram estrategicamente no campo de batalha. O solo, coberto pela neve sobre o chão rochoso que facilmente se desfaz pelo "abre alas" militar, recebe seus peões silenciosamente, como peças novas a se posicionarem no tabuleiro. Os soldados marcham calados, concentrados no alvo. Apenas se ouve o som rude das esteiras do tanque de guerra.
Do outro lado deste campo de guerra encontra-se uma velha cabana feita de madeira que abriga o alvo: um único homem, amedrontado, escondido em um lugar praticamente desprotegido.
Os soldados não se pronunciam a respeito, mas de acordo com a natureza da missão, o subconsciente mostra sutilmente a cada um o quão estúpido e contraditório é seu dever neste momento. "O que um ex-agente de nossa nação pode fazer além de abrir o bico e ninguém lhe dar crédito? Seria muito mais inteligente mandar um agente para, silenciosamente, executá-lo! Não faz sentido!" Soldados não devem ter consciência, mesmo que esta grite em seus ouvidos ou atormente seu coração.
O pesadelo foi feito para todos. Pouco a pouco, tranquilamente, os militares se aproximavam da cabana. Indefeso, atônito com o que seus olhos presenciam por detrás da janela, Ângelo não vê saída. Mesmo que houvesse oportunidade de se defender, nunca antes manuseou uma arma de fogo. A natureza do cenário também é estúpida e contraditória para ele. "Por que é preciso um tanque de guerra e soldados fortemente armados para render um homem indefeso e sem instrução de combate? Eles enlouqueceram?"
A insanidade toma conta de todos os peões deste tabuleiro. Ninguém é capaz de compreender a visão de jogo empregada pelos estrategistas que arquitetaram o ataque. Com medo, Ângelo decide sair, entendendo que não há escolha. O tanque de guerra aponta seu canhão para a direção de Ângelo. A caçada terminou. Cercado e indefeso, Ângelo decide encarar diretamente os militares, tendo a certeza de a morte está para abraçá-lo. Todos os soldados apontam suas armas para a direção do homem. Uma figura sai da escotilha do tanque. É o comandante da missão. Com ironia, ele ordena a um de seus homens que se aproxime diretamente do alvo para rendê-lo. Ângelo não esboça reação. Revistado, nenhuma arma é encontrada. O Soldado fica a uma distância segura para puxar o gatilho em qualquer eventualidade. Diante da situação, Ângelo viu uma oportunidade de se pronunciar.
- Enquanto estive na guerrilha, não via covard...
O soldado interrompe o discurso, golpeando o rosto do rendido com sua arma. O comandante dirige a palavra em seguida.
- Esqueça seus direitos. Não ouse proferir suas palavras para seus ex-irmãos, traidor!
O comandante aciona seu comunicador e entra em contato com seus superiores, informando a rendição do alvo, e solicitando autorização para baixa.
- Informe-nos antes de sua situação, comandante.
Não é uma simples pergunta. O óbvio não parecia ser óbvio. Ainda assim, o comandante informa a seu superior.
- O alvo está cercado, rendido e indefeso. Autorizada baixa?
- Não me referia à situação do alvo, comandante. Informe SUA situação.
O comandante se surpreende com o que ouve. Sente vontade de rir diante da insanidade. Ele responde sem perder a compostura.
- Os soldados estão posicionados e prontos para atirar. O canhão do tanque está apontado diretamente para o alvo, que está rendido.
Ouve-se uma voz no fundo da comunicação por rádio, dizendo baixinho "cuidado ao eliminá-lo". E o supervisor emite a ordem.
- Baixa autorizada mediante execução por disparo do canhão.
O comandante se surpreende, e grita para si em pensamento: "Disparar com o canhão? Não é possível! Um único alvo indefeso?" De acordo com sua educação militar, evidentemente o comandante não pensou em compaixão perante seu alvo, mas no absurdo em executar um inimigo totalmente rendido com uma arma de fogo extremamente superior.
A ordem foi expressa pelo comandante para recuar seus homens do alvo. A sentença foi dada. Ângelo grita o mais alto que consegue. O canhão é disparado. O tempo acabou. E quando o tempo se esgota, uma vida inteira é vivida em uma fração de segundos. Antes de o projétil alcançar seu alvo, Ângelo pode viver sua vida inteira naquele instante, desde sua infância até sua sentença.
Estranhamente, o tempo é congelado! O projétil é visto estático no ar. Todos os envolvidos têm sua ação interrompida, desde os batimentos do coração até a subconsciência. Uma nova dimensão deste mesmo tabuleiro é enfim revelada. Os reais jogadores finalmente tomam o campo de batalha. O combate agora é caracterizado por um plano interdimensional e estritamente espiritual.
O duelo entre a luz e as trevas toma forma. Do lado dos soldados militares, o anjo das trevas de rosto coberto por um capuz cintilante empunhado de sua foice negra afronte de seus subordinados. Do lado de Ângelo, dois anjos da luz empunhando cada um uma espada radiante. Os dois guerreiros de vestes brancas e belíssimas asas interpelem o ataque voraz da foice negra da morte lançada sobre a alma de Ângelo.
- Não toleramos a morte em hora imprópria! Recolha imediatamente sua foice, anjo das trevas!
- Eu tenho ordens para carregar este homem para o manto das trevas. Seus pecados são o meu argumento. Peso maior não há sobre as mortes que este homem causou neste mundo. Devo levá-lo sem restrições!
- Não permitiremos. Não há por que explicarmos a um mero carrasco as ações e planos de Deus. Obedeça-nos enquanto lhe concedemos oportunidade.
- Por que vocês estão me impedindo de realizar meu serviço? Será que não observam a situação irreversível que estes humanos criaram? Não há milagre que o salve de mim!
- Você não tem poder sobre a alma deste homem, e muito menos sobre a vida dele... Será que você não observou nos olhos dele a vontade de viver?
A morte encara os olhos de Ângelo, e se afasta pouco a pouco. Uma chama branca é vista em sua retina. Os anjos continuam o discurso.
- Há argumento maior do que a vontade de viver, acima da morte iminente? As chamas que emanam dos olhos deste homem apavoram o mais terrível dos demônios. Não ouse exercer oposição aos caminhos de Deus novamente...
O anjo da morte cai em irônica gargalhada.
- Esplêndido! Eu estava realmente desconfiado. Não é por pouco que vocês exercem oposição ao meu serviço, mesmo diante de uma situação espiritual praticamente irreversível. Devo pressupor que a existência de vocês se extinguirá em breve!
- Existência esta que nunca será tocada senão por quem nos enviou. Não seremos destruídos por seres inferiores que insistem em assuntos que não lhes são pertinentes! Recolha imediatamente sua foice, e volte de onde veio! Não vamos exitar caso insista em sua tolice!
O coração da morte não pulsa, não sente, não escuta e não deseja. A morte nunca se divertiu por buscar quem quer que seja. Sua existência se resumia a ceifar vidas para seu mestre. Porém, regras foram quebradas, modificadas. Sentidos nunca antes despertados despedaçaram facilmente as impenetráveis muralhas do íntimo. O coração negro e desolado passou a ser rapidamente encharcado pela cólera da malevolência.
- Minha foice nunca provou o sabor do sangue dos anjos. Nunca pude sentir o gosto de ceifar suas asas, e arrancar-lhes sua divindade! Hoje, minha foice finalmente irá provar deste sabor através de suas vidas! Esta noite, os ceifeiros se banharão com a queda dos anjos do céu!
- Esta noite, a morte será vencida! Sua vergonha será revelada pela luz da manhã!
Um dos subordinados avançou rapidamente almejando a jugular de um dos anjos, como um leão faminto. Sedento por sangue, este reles soldado foi impedido pelo seu mestre.
- Contenham-se, infelizes! A sede foi despertada, mas sou eu quem irá se saciar com o sangue dos anjos pela primeira vez!
-... DESAPAREÇA!
Um dos anjos estendeu seu punho em direção ao afoito lacaio, despedaçado por feixes de luz que o atingiram com feixes divinos. Suavemente, o anjo fecha os olhos e diz, com voz firme:
- A sede de vocês foi despertada? Por favor, não se contenham! Atrevam-se a tocar em nossas asas! Nossas almas estão prontas para findar o desejo de morte de vocês ao usurparmos sua miserável existência deste universo!
A tropa de lacaios avançou ferozmente, com uma sede incontrolável! Sua loucura foi tamanha, a ponto de ignorar o manto cintilante de seu mestre. A foice negra dançou sob o ar tal como uma estrela negra a riscar os céus, punindo à rigor os indisciplinados. Os corpos despedaçados se contorciam no chão, como vermes procurando se enterrar na terra para aliviar sua dor. Os lacaios estavam pagando um preço bem mais caro com a sua agonia do que simplesmente perder a existência. O anjo negro se delicia, aproveitando cada segundo dos sussurros doentios de seus subordinados a implorarem pelo fim do castigo. Os ouvidos da morte captavam os gemidos e sons agonizantes de suas vítimas como uma prece de adoração à sua imagem, capaz de libertar os cativos da dor de viver com sua belíssima foice negra. No delírio do que ocorrera, a morte, que nunca provou de tal sentimento, entoou uma triste canção durante sua nova ceifa. Naquela loucura, a foice negra que antes dançava sob o ar com o terror de sua beleza, descia rispidamente, grosseira em cada movimento pendular. Como em uma plantação, a foice trabalhava levando cada semente maligna encarnada nos subordinados da morte, arrancado-as do reino da existência, uma a uma.
Os anjos de luz apenas observam rígidos e fiéis em sua formação, porém perplexos em seu íntimo, incrédulos no que seus olhos contemplam. Após o fim de seu serviço, o anjo da morte se volta novamente para seus algozes.
- Hahahahahahaha! Que doçura! Que sensação incrível! Já não existem mais regras! Tudo o que resta agora é a sede, a fome, o desejo! Minha foice grita enlouquecida, sedenta por sangue inocente!
- Está fora de si... Por acaso a morte de seus subordinados fazia parte de sua foice negra? Responda!
- De forma alguma! Eles jamais pertenceram a minha lista! Nem eles... Nem vocês!
Um silêncio sombrio e estarrecedor tomam conta do cenário. A razão sucumbiu. Nada mais tinha sentido. As asas dos anjos irmãos bateram tão fortes que o chão estremeceu. O combate entre luz e sombra começou. Cada um dos combatentes desembainhou suas armas em tempo oportuno. As luminosas espadas eram unas com o céu, ressoantes como relâmpagos a riscar as nuvens. O som ressoante das espadas desembainhadas sugeria o teor da batalha feroz que estava para ocorrer. Os irmãos sobrevoam o alvo em alta velocidade, circundando-o constantemente. A morte se irrita:
- Vocês voam como urubus à busca de carniça! Não permitirei tal sacrilégio perante a face bela e suave da morte!
O anjo negro corteja sua companheira. A foice negra dança com violência e sagacidade, diferente da última vez. Com velocidade e alcance impressionantes, ela chega do chão até os céus como um relâmpago negro. O ferro se choca com ferro, ambos constituídos de matéria prima divina. O rastro de fogo emana de suas laminas diante da poderosa colisão. O outro anjo, que não recebeu o impacto, voa em um rasante incrível em direção a seu inimigo, e ainda assim acaba sendo interpelado pela foice negra. Por pouco, sua cabeça não foi decepada. A morte espreita, gargalhando sem parar.
Os corações dos seres celestes rugem como feras ameaçadas. É difícil manter-se calmo. O calor deste combate imprevisível faz do coração dos mais valentes seu único amuleto. Os irmãos celestiais insistem no cerco de seu inimigo através de sua fiel estratégia de combate exercida a rigor. As asas batem com muita força. A formação é feita e desfeita constantemente durante o sobrevôo dos anjos de luz. Ora circundam o adversário, ora atacam juntos ao mesmo tempo, ora mudam de direção. Nada surte efeito. Cada golpe ressoa como um grande sino. Rastros de fogo riscam os céus após cada impacto das espadas.
A morte é paciente, ri baixinho, fica à espreita. Sorrateiramente, o anjo das trevas prepara sua foice, sem preocupação. Em um instante, a morte lança sua foice ao ar, que gira graciosamente, alcançando a guarda de suas vítimas. A estrela negra sobe aos céus para mostrar aos anjos celestes o triste e suave fim que a morte é capaz de trazer a cada investida. Os cortes são defendidos sem grande dificuldade, estranhamente. A armadilha estava pronta. O giro gracioso e veloz da estrela negra se intensifica em uma violenta tempestade de ferro. Como uma máquina infernal e descontrolada, a foice busca com ímpeto um corpo para perfurar. A estratégia dos anjos não funcionou, porém os nobres seres celestiais foram astutos em não contra atacar durante a investida inicial.
A morte aproveita a oportunidade e lança velozmente uma adaga branca, que perfura o estômago de Ângelo! Nem um milímetro de seu corpo foi movido, pois sua existência se encontra no reino dos homens. Porém, no campo espiritual, o ferimento em seu estômago começou a sangrar, muito devagar. O vermelho do sangue brilhava como se fosse banhado pelo sol. A morte fica perplexa, sem entender o que acontece. O tempo permanece intacto. Os mortais não se movem. A morte ainda não venceu.
Com fúria total, os anjos de luz golpeiam audaciosamente o anjo da morte, sendo este possível devido ocorrer à quebra de ritmo dos ataques da foice negra. Após receber profundos cortes em sua vestimenta, o ser maligno abandona sua capa cintilante, e revela sua face. O rosto da morte chora lágrimas incandescentes, fervendo como lava ardente. Seu corpo é branco como a neve, e brilha como uma estrela distante em meio ao nada. Seu corpo não reluzia como o corpo dos anjos, mas ainda assim conseguia emanar um brilho opaco. Seu corpo é robusto, porém cheio de deformações. Os ferimentos causados pelos guerreiros celestes abriram cortes profundos em seu peito e em suas costas. O sangue incandescente escorre por suas feridas abertas, como lava de um vulcão. A estrela opaca e enfraquecida em meio à total escuridão se via rachada. O grito perturbador da garganta da morte ecoa pelo ar.
Em um acesso implacável de ódio, os olhos assassinos percorrem rapidamente o campo de combate. A morte deixou de espreitar, e agora está à caça de suas vítimas. A foice negra, como em um passe de mágica, criou vida própria, e interrompeu as ações de um dos guerreiros, perseguindo-os. Com uma velocidade assustadora, o anjo das trevas subitamente dá o bote em uma das aves divinas que a combatia! Não houve tempo para reações. Seu irmão estava em meio a uma nuvem negra de lâminas pairando no ar. Caído no chão, a morte agarra seu prêmio. As asas da vítima foram brutalmente arrancadas a mãos nuas. A dor do valente e ferido anjo podia ser sentida no coração de seu irmão celestial. O anjo da morte então se sacia no sangue derramado de seu grande inimigo. Tudo o que se podia ouvir era sua risada macabra. A foice negra se recolheu para a mão de seu mestre.
O guerreiro de luz lançou-se em direção ao seu mortal inimigo, que ergueu sua foice negra com as duas mãos finalizar seu trabalho. O momento é crítico. O ceifeiro se prepara para enviar o anjo ferido e indefeso para o tormento eterno. Com o corpo inflamado envolto de uma chama inextinguível, a fúria divina avança em seu rasante com velocidade inacreditável! O relâmpago vivo foi avivado! Sentimentos são despertados, e no mesmo instante, deixados para trás. Acima da dor, da tristeza, da raiva, do desejo, até mesmo do pecado e do mérito, a justiça não tardou nem se adiou. A justiça simplesmente caiu, como um raio! O mórbido algoz foi repelido do indefeso anjo caído. A foice foi lançada para longe, e as mãos do ceifeiro foram gravemente feridas. A morte, em meio a risadas irônicas, desafia a luz de braços abertos, e esbraveja:
- VAMOS! ODEIE A MIM! ODEIE SEU DESTINO! ODEIE ESTES SENTIMENTOS QUE VOCÊ NUNCA SENTIU E AGORA OS SENTE! DEIXE A IRA TOMAR CONTA DE VOCÊ!
O guerreiro é íntegro, e responde severamente:
- Os sentimentos não inflamam meu coração, não abastecem minha vontade, e não preciso deles para ter motivos de viver. Mas mesmo que estes sentimentos adormecidos tomem meu coração, eu jamais serei levado à derrota por conta deles!
- Mentiroso! Você agora é escravo de seus sentimentos! Posso sentir de longe o cheiro de seus medos! Sua ira, sua frustração e sua dor me fortalecem a cada segundo! Mesmo com mãos feridas, você não escapará de minha foice!
Com certo esforço, o anjo negro consegue erguer à distância. O guerreiro celeste então diz:
- A morte não foi feita para destruir os homens, e sim para ser vencida por eles!
- Cale-se! Você não sabe nada sobre minha ordem! Além disso, os ceifeiros buscarão a colheita que lhes pertence!
- Mesmo que minhas asas sejam arrancadas, mesmo que meu querido irmão deixe de existir, mesmo que os maus sentimentos me escravizem por toda a eternidade... EU JAMAIS PERMITIREI QUE SUA ORDEM CUMPRA SEUS PLANOS!
- HAHAHAHAHAHAHA! Então responda isso para a minha foice!
A nuvem negra de lâminas se aproximava paulatinamente. A engrenagem sanguinária passava a girar mais devagar do que antes, embora continuasse incrivelmente veloz. Confiante, o guerreiro de luz avança. Suas asas estão cansadas e seu corpo já não reluz como de costume. Seu último golpe consumiu boa parte de suas forças. Com sucesso, o anjo celeste alcança seu feroz inimigo, e o golpeia com vigor em seu tronco. O inimigo resiste a cada golpe, enquanto evoca sua foice. O anjo de luz alvejava decepar as mãos feridas do ceifador, que se moviam rápido demais mediante sua conjuração. A espada celeste tem poder para dividir estrelas, porém seu fio de corte estava cada vez mais desgastado. A divina lâmina perdia aos poucos seu corte supremo a cada golpe desferido em seu inimigo. A dura batalha entre a força da luz e a resistência das sombras se estendia. Os joelhos do ceifeiro se dobravam pouco e pouco diante da barragem de espadas que o castigava sem trégua. A máquina maldita finalmente alcança seu mestre, protegendo-o com movimentos rudes e descoordenados. A espada, que já estava desgastada por completo, foi arrancada das mãos do nobre guerreiro! Indefeso, a foice negra encontra seu par para uma última dança, sem música, sem ritmo, aos tropeços, pisando rudemente aos pés de seu parceiro. Pés ensangüentados, peito rasgado, asas condenadas. A estrela negra preenchia a luz branca com sua sombra. A pele celeste que reluzia com glória se apaga devagar. O anjo de luz chora em silêncio, sem perder seu semblante valente. A dança termina.
O anjo de luz coloca a cara no pó. Ele se põe a orar, tombado no chão. Suas asas trêmulas o protegiam, na esperança de lhe dar refúgio. Triunfante, a morte se divertia, lançando o sangue derramado como poeira pelo ar. Uma névoa de sangue se formava, e banhou o ferido anjo das trevas que caminhava lentamente em direção à sua vítima. O anjo negro, com mãos sujas do sangue imaculado, ignora sua dor, mesmo sendo banhado por sangue santo a queimar lentamente sua pele branca. As asas trêmulas protegiam sua criança da maneira que era possível. O anjo negro toca suas mãos feridas nas asas do anjo de luz, apreciando as. Ao apoiar seu pé direito em cima da cabeça do santo guerreiro, a morte começou a arrancar sua asa esquerda, bem devagar, aproveitando cada centímetro do corpo celeste que era dilacerado. O símbolo maior de um anjo de luz são suas asas, como ao guerreiro sua espada, e ao artesão suas ferramentas, e ao agricultor suas sementes. Um anjo celeste não tem honra sem suas asas. Os sentimentos, experimentados pela primeira vez a doses cavalares, causam loucura, desespero, agonia. O leão branco perde muito sangue devido seus dentes quebrados, suas garras arrancadas, sua honra despida.
Quando sua asa esquerda foi completamente arrancada, um imenso clarão cegou os olhos da morte de repente! O último milagre batia forte no coração do leão. Seu corpo celeste estava envolto em chamas, e seus olhos brilhavam como a manhã. A humilhação, a vergonha, a dor... Sentimentos existem, e novamente, são ignorados. Perder a liberdade, perder a honra, perder a existência... Sentimentos gritam, e são corajosamente esquecidos. O coração celeste grita mais alto em seu brado de valentia. O nobre guerreiro de luz abriu mão de sua honra, de sua integridade, e de todo o seu ser! Esta atitude lhe deu forças para um último sopro! O guerreiro de luz ergueu sua cabeça, desequilibrou o inimigo, e golpeou-o com seu punho. A morte então sentiu um frio congelante na espinha! O medo aterrorizante tomou conta do anjo negro! Num ato de desespero, a morte conseguiu lançar sua foice negra, que protegeu a tempo seu mestre, porém foi completamente despedaçada ao chocar-se com o destemido punho! O golpe acertou violentamente o lado direito do peito, quase arrancando o braço. Um grito de dor que traria pesadelos insanos a quem o ouvisse ecoou da garganta da morte. Seu braço ficou despedaçado por dentro, e seu peito foi quase aberto pelo ferimento. Sangue incandescente escorria sem parar do peito da morte como lava borbulhante.
Muito ferida por fora, sua dor nem se comparava ao que se passava por dentro. Medo. Desespero. Seus olhos, cheios de lágrimas de ódio procuram seu inimigo, que depois da investida, encontrou o chão, ficando imóvel em meio ao sangue e ao pó. Os anjos do céu, caídos na dor de sua derrota, murmuram palavras estranhas, clamando por um milagre. Porém, não há mais esperança. Os ferimentos são graves. O sangue denso mancha sua pele clara. As palavras murmuradas são indiferentes para o interesse da morte.
O anjo das trevas decide então caminhar em direção de Ângelo para terminar seu trabalho, que certamente seria o último diante seus graves ferimentos. Mesmo sem um braço, mesmo com o peito quase que aberto por completo, mesmo sem sua foice, a morte caminha, com sede de sangue inocente. Sua honra foi destruída, e agora, só o sangue de Ângelo pode saciá-la uma última vez. Ao se aproximar do homem, o anjo negro percebe que sua adaga não absorveu sangue.
A arma é adornada por uma serpente negra enrolada na empunhadura. Há runas escritas na lâmina. Segundo o que se conhece sobre a adaga nas miríades celestiais, esta arma perfura a alma de seres humanos para extrair-lhes seus sonhos e sua esperança durante seus últimos momentos de vida. As runas escritas devem condizer com a vida e os pecados de suas vítimas, do contrário, a arma não surte o efeito designado. Os seres das trevas se alimentam da tristeza e da agonia dos humanos, muitas vezes apunhalando-os no coração para extrair sua essência mais facilmente.
A morte não se importa, talvez por estar se afogando em seu próprio sangue. Quando a morte se depara com os olhos de Ângelo, que queimam como chamas brancas, o anjo negro novamente se sente intimidado. Sem perder tempo, a morte fecha os olhos, toma a adaga com sua mão esquerda e, ao tentar retirá-la do corpo de Ângelo, seus ouvidos captam um grito distante. Este grito se intensificou e se tornou amedrontador. O forte brado vinha das entranhas até a garganta de Ângelo! A morte se assustou como nunca antes, e entrou em estado de choque. Em todas as miríades celestiais, jamais uma voz humana pode ser audível diretamente. Os anjos e os seres das trevas ouvem os humanos por outros sinais, nunca através da voz. O anjo negro estremece, e se afasta de Ângelo rapidamente, tentando encará-lo. A morte não entende nada, mas insiste em levar a alma de Ângelo para seu mestre. O homem deixou de ser homem naquele momento, para se tornar um ser cheio de luz e de poder! A lâmina da adaga branca se despedaça. A empunhadura cai no chão, e Ângelo a esmaga com o pisar firme de seu pé. Seu corpo se transforma em um ser totalmente diferente, dotado de um brilho próprio como o sol da manhã. Embora sem asas, seu corpo reluz como o corpo dos anjos celestes! Consciente, Ângelo se dirige ao anjo da morte, e diz:
- Eu vi tudo o que você fez...
Sua voz ressoante deixa muitos significados. Ângelo sofreu calado, despertou, e fez questão de julgar a morte pelos seus atos. O anjo negro então, responde:
- Humano... Fraco! Pergunto-me quem é você para julgar meu serviço... Eu vim para buscar sua alma! Vim para levar você para meu mestre!
- Também não sei quem sou... Mas tenho certeza de que minha alma não pertence ao seu mestre!
- Veremos isso em breve... Mortal...
O anjo da morte consegue escapar. Ângelo o persegue, porém é impedido por uma luz que chama sua atenção. Esta luz é propagada por dois relâmpagos brancos que caem diretamente no corpo dos anjos caídos. A morte pode esperar por sua hora, pois ela poderá ser impedida de agora em diante. Ângelo pensa o quão irônico é impedir a morte de chegar a sua hora. Em seu passado sombrio, ele sabe que merece mesmo morrer, e que nada restava senão esperar por seu fim. Enquanto se dirigia ao foco do relâmpago, Ângelo recolheu as espadas sagradas para devolver aos seus respectivos donos, os anjos que o protegera. Ao chegar perto do anjo que perdera suas duas asas no início da batalha, seu corpo reluzia através do relâmpago branco que o atingiu. Reunindo o restante de suas forças, ele faz um pedido:
- Ângelo... Leve-me até meu irmão... Por favor...
- Nobre guerreiro... Não entendo porque minha vida foi protegida por você e seu irmão. Não mereço viver... Farei o que vocês pedirem, independente da vida ou da morte. Sei que... Deus... Teve compaixão de mim...
As lágrimas de Ângelo caíram sobre o manto ensangüentado do anjo guardião, que foi carregado por ele para perto de seu irmão. Ambos reluzindo, os anjos tentas se levantarem, com dificuldade. Sorrindo, eles contemplam o milagre ocorrido.
- Ângelo... Um milagre aconteceu... Você foi despertado! Não temos muito tempo para explicar, pois nossa existência se extinguirá em breve...
Ângelo entendeu que há um propósito para sua nova vida, principalmente diante suas recentes descobertas que fez, e as razões para sua deserção. Parece que ele encontrou asilo. Ângelo responde aos guerreiros celestiais:
- Por favor, não se preocupem comigo... Eles estão me perseguindo incansavelmente, então logo vou descobrir tudo! Digam-me, poderei eu voltar à minha realidade?
- Não temas... Você voltará para o reino dos homens. Saberá o que fazer quando voltar para seu reino. Infelizmente, não é apenas a sua vida que eles desejam, mas também a sua alma. Os que o perseguem no reino dos homens são conhecedores dos planos celestiais, e desejam ter acesso entre os reinos. De todos os humanos que os olhos de Deus buscaram... Apenas você e mais alguns poucos escolhidos possuem dentro de si a revelação, o despertar e o coração para serem chamas vivas em meio às trevas que estão por vir...
O outro anjo pede para que Ângelo toque em sua asa. Ele o faz com muito pesar. O anjo diz:
- Protegemos você com prazer, pois sabemos que irá vingar a todos através da resposta de Deus. Nossa missão foi cumprida!
Ângelo diz:
- Confio no que disseram, mesmo sem entender bem. Quando eu voltar à minha realidade, continuarei meu propósito.
- Seu destino será bem diferente a partir de agora. Nossa existência agora assumirá uma nova forma. Perdoe-nos por não termos tempo para explicar... Tudo o que está encoberto será mostrado em breve. Aceite... Este último presente... Pois iremos com você... Até o fim...
O relâmpago branco cai novamente em cada um dos anjos. As espadas dos guerreiros se fundiram aos seus corpos, e eles se transformaram em uma única e belíssima espada. A lâmina infelizmente se encontra quebradiça, e a bainha danificada. Há um escrito na lâmina, incapaz de ser lido devido às rachaduras. Nem mesmo as letras contidas na lâmina são decifráveis.
Os anjos são mesmos guardiões sagrados a mando de Deus para cumprir Seu propósito. Ângelo chorou por isto, e chorou por entender o triste fim de quem o acompanha em sua missão de agora em diante. Uma mistura de gratidão, de perdão, e de tristeza se intensifica em seu coração. Palavras não conseguem extrair o que Ângelo sente.
O estado da espada remete à dor sofrida pelos guardiões pela batalha travada. O brilho da espada ainda reluzia. Ângelo associou este brilho com o sorriso dos nobres guerreiros ao ver sua missão cumprida. Ele abraça a espada, e promete para si mesmo e para Deus em buscar sempre a verdade, e amar a verdade como ama a si mesmo. Sua busca por respostas surgiu desde sua deserção ao regime “pacificador” de seu país, mas Ângelo jamais imaginou chegar a participar do plano celeste.
Um vento frio sopra suavemente. Ao olhar ao redor, Ângelo volta ao reino dos homens. Ele percebe que flocos de neve começam a cair. Os soldados armados estão mortos, e o tanque destruído.
Ângelo olha para o céu, enxuga suas lágrimas, e entra em sua cabana. Ele recolhe alguns documentos, e parte do lugar. A pequena casa era de seu finado pai, que morreu em um campo minado durante uma de suas missões para o regime. A cabana era como um refúgio para os dois. Ângelo se lembra dos poucos e bons momentos junto a seu pai.
Sem tempo para sentimentos e lembranças, Ângelo apenas tem em mente sua nova chance de ser um homem honrado. A verdade o aguarda no caminho de neve à frente.