Contando ninguém acredita

A História de amor de Salvador e Benedita

Salvador era um rato solitário que vivia em um velho casarão numa cidade grande. Quando era bem pequenino seu pai e os irmãos foram eliminados pelo serviço de dedetização e só lhe sobrou sua mãe. Passado algum tempo, a mãe foi morta pela malvada ratoeira. E assim o pequenino Salvador passou a viver só.

O tempo foi passando, Salvador cresceu e permaneceu sozinho naquele casarão. Comia muito pouco e por isso sua presença não era notada. Tinha poucas lembranças da época em que a família ainda vivia e ele brincava feliz e despreocupado, correndo pelos cantos escuros do casarão e fugindo do preguiçoso e pançudo gato Genaro, que não conseguia pegar nada e nem ninguém. A não ser um pedaço de salsicha. Quando atingiu a idade adulta ele sentiu a falta de uma companheira e numa de suas andanças pelo casarão ele conheceu a hanster Benedita.

Benedita era uma ratinha branca criada em laboratório. Havia fugido para não virar comida de cobra. Ela e seus irmãos foram criados para servirem de cobaias nesses laboratórios malucos ou para serem vendidos como comida em zoológicos. Sua mãe foi cobaia em um laboratório de hospital e depois de tantos testes e agulhadas, a pobre coitada ficou com um nariz do tamanho de uma bola de futebol. Benedita então resolveu fugir para escapar de um destino parecido com o de seus parentes. Ela tentaria uma sorte melhor. E assim Benedita chegou até aquele casarão, depois de passar uma canseira num bando de moleques que tentaram pegar a ratinha branca. Benedita não se deixaria pegar assim tão facilmente. Preferia morrer a ser aprisionada outra vez. Ela foi caminhando pelos becos escuros e os cantos escondidos da cidade até chegar ao casarão.

E foi assim que ela acabou chegando até ali. Sem saber que naquele lugar já havia um rato solteirão e solitário, que estava precisando urgentemente de arranjar uma namorada. Numa de suas constantes saídas noturnas em busca de comida, os olhos vermelhos de Benedita se cruzaram com os olhos castanhos de Salvador e foi logo pintando um clima entre os dois. De repente os dois ratinhos já se viam conversando animados e contando suas trágicas histórias de infância, como se fossem velhos conhecidos. Nenhum deles tinha histórias felizes para contar. Foram somente perdas e infelicidades que marcaram seus caminhos. Mas o destino os faria mudar essa história.

E então o amor aconteceu, entre o feio e cinzento rato de esgoto e uma delicada hamster de laboratório. Talvez solidão, não se sabe ao certo. Mas daí pintou uma vontade louca de viverem juntos e criarem uma família unida e amorosa. A lua e o dorminhoco gato Genaro, alheio ao que acontecia debaixo de seus bigodes, foram testemunhas deste amor que foi acontecendo devagarzinho e com o passar do tempo foi se fortalecendo cada vez mais.

Mas, como tudo que é bom dura pouco.

Os donos do casarão começaram a perceber que a comida na cozinha estava sendo pilhada. E então resolveram acabar com a farra do casal de ratos, instalando a terrível ratoeira. É que o jovem casal, apaixonado como estava, aumentaram muito seus apetites. Porque o amor é assim, quando ele surge, aumenta nosso apetite pela vida nos trazendo alegrias. O amor é uma luz que nos ilumina e fortalece nossa vontade de viver. Com o grande rombo de comida na cozinha e a falta de agilidade do gato Genaro, foi decidido que a partir daquele dia seria instalada uma ratoeira na cozinha. Puseram como isca, um grande pedaço de queijo Minas e torceram para que no dia seguinte algum rato aparecesse esmagado pela impiedosa ratoeira. A noite chegou e os dois ratinhos saíram para fazer um lanche. Um cheiro bom de queijo fresco chegou até seus narizes, e guiados pelo olfato, chegaram até uma imensa fatia de queijo, que mais parecia um pedaço da lua, brilhando no chão. De tão branco que era. Ao se aproximar do queijo o esperto Salvador logo percebeu que ele estava preso por uma ratoeira, mas, a ingênua Benedita, que de tanta fome estava, foi logo abocanhando um pedaço pela beiradinha. O rato de esgoto ao perceber o engôdo, ágil e esperto como era, puxou sem demora as orelhas de Benedita quando ela se debruçou para cima da ratoeira. E zás trás, a armadilha foi acionada, e a lâmina passou por um triz bem ao lado da cabecinha da jovem hamster. Apesar da ratoeira não tê-la matado, a sua calda ficou presa dentro dela. A ratinha chorou pela imensa dor que sentia e o rato apaixonado ficou sem saber o que fazer para soltar a rabo preso de sua amada. Ele temia que o choro descontrolado de Benedita atraísse o gato Genaro e os donos da casa. O ratinho usou toda sua força para tentar tirar a calda de Benedita de dentro da ratoeira. Mas foi em vão, a armadilha nem ao menos se mexia.

__O que vou fazer meu Deus? Perguntava Salvador para si mesmo. De repente ele ouviu o ranger de uma porta se abrindo. Era Maricota, a dona do casarão, que ao escutar um barulho vindo da cozinha, imaginou que algum rato havia sido capturado. Salvador começou a suar frio, estava diante de mais uma inevitável perda. Não pensou duas vezes, correu até a gaveta do armário, pegou uma afiada faca de cortar carnes e decepou parte da calda que estava presa na armadilha. Benedita urrou como um leão, mas apesar da dor e amparada por Salvador eles conseguiram chegar sãos e salvos até o esconderijo. Bem a tempo, porque Genaro e a velhota já entravam pela cozinha adentro. Os dois olhavam estupefatos para a ratoeira acionada e sem entender como aquele rabo de rato foi parar ali sem o seu dono. E a faca de açougueiro do lado? Um mistério para a velha Maricota e o preguiçoso gato Genaro.

Enquanto isso, bem seguros no esconderijo, Salvador e Benedita tomaram uma sábia decisão. Eles deixariam o velho casarão para sempre e iriam embora para o campo. Sairiam à procura de um lugar em que pudessem se sentir seguros, e para criar em paz os ratinhos que viessem a ter.

Depois de percorrer vários esgotos e becos, eles vão deixando para trás as incertezas da cidade grande e junto com elas as suas tristes mazelas. E em seus pequeninos corações a esperança de uma vida melhor florescia a cada dia percorrido. Ao longe a lua ilumina a cidade, que aos poucos, vai ficando cada vez mais distante. Na escuridão da noite um rato cinzento de esgoto ampara em seus braços uma hamster branca, com um toco de rabo, nesta longa jornada da vida em busca da sonhada felicidade.

Após uma intensa tempestade que caiu durante toda a noite, o sol foi surgindo aos poucos. Tímido no início, mas agora com todo seu esplendor. Depois de longos dias de caminhada o casal de ratinhos chegou a seu destino final. O campo verdejante se estendia até as montanhas verdes e majestosas e ali o jovem casal resolveu permanecer dali por diante, num cenário perfeito desenhado por Deus. Após um rápido reconhecimento do local, eles foram se alojar em um grande paiol ao lado do curral, onde vacas gordas já aguardavam os peões para a ordenha diária. As galinhas cacarejavam no terreiro ciscando as minhocas e os cachorros latiam para todos que atravessavam o portão do curral. Ah, como era bom viver na fazenda! E a partir de agora também seria o lar dos esperançosos ratinhos.

_É aqui que vamos viver de hoje em diante, aqui tem comida em abundância. Diz Salvador olhando para as frondosas árvores repletas de frutas.

_Aqui seremos muito felizes! Concordou Benedita. E se dirigiram para uma goiabeira carregada de frutas maduras. Comiam tranquilamente, quando escutaram tristes miados vindos de dentro do rio que atravessava o pomar. Curiosos, se aproximaram do rio e viram um pequeno gatinho, que mal havia aberto os olhos, encima de uma pedra que lhe servia de abrigo contra a correnteza. O felino gritava implorando socorro, mas a força da água era tão forte, que ninguém escutava os pedidos de socorro do bichano. Não havia nenhuma possibilidade dele sair dali sem se afogar. O gatinho ao vê-los, gritou pedindo ajuda para sair do rio. Se os ratos não o ajudassem, ele ia morrer afogado, os dois ratinhos olham desconfiados para o bichano. Afinal desde que o mundo é mundo, gato e rato não se bicam. Eles decidem ir embora sem ajudar o pequeno filhote.

A correnteza foi ficando cada vez mais forte e a pedra onde o gatinho se abrigava começou a se mover e ele certamente morreria afogado. Salvador e Benedita já acostumados a sua má sorte decidem dá uma chance ao bichano. Afinal era só um filhotinho! Salvador se jogou no rio em direção ao gato para tentar salvá-lo. Lutando contra a correnteza e com muita dificuldade o rato conseguiu chegar até o gatinho. O bichano tinha água até o pescoço, e quando viu sua salvação chegar, pulou em seu pescoço cravando fortemente as unhas nas costas de seu salvador. Com o peso do gato em suas costas, Salvador pensou em desistir, em se deixar levar pela correnteza. Mas do outro lado da margem do rio, ele viu Benedita ajoelhada, rezando para que eles se salvassem. O rato cansado e com o corpo em pandarecos buscou forças para chegar até à margem e deixar o gatinho num lugar seguro. Enfim, Salvador conseguiu atravessar o rio com o filhote de gato nas costas, agora a salvo. Embora soubesse que assim que o gatinho se restabelecesse, certamente não o pouparia. Não esperava gratidão por parte do felino. Certamente ele ia virar ração de gato.

Mas não foi bem assim.

Estavam os três animais descansando as margens do rio. Quando um casal de gatos persas se aproximou ameaçadores. Eles já estavam em posição de ataque quando perceberam um pequeno gatinho entre os ratos. A gata correu em direção ao filhote dizendo:

_Meu filho, onde você estava? Passamos a noite toda procurando por você. Enfrentamos a tempestade, fomos a todas as fazendas da redondeza e até na cidade te procuramos, mas, ninguém sabia onde você estava! Disse a gata Mercedes, chorando e lambendo sua cria, que estava toda ensopada.

O altivo e burguês gato persa, agora com feições mais brandas, fuzilou os dois ratos asquerosos e se voltou para o filho perguntando com desdém:

_O quê um legítimo gato persa como você, faz em companhia de dois imundos ratos de esgoto?

Os dois ratinhos se encolheram assustados.

_É agora que vamos nos transformar em lanchinho de gato! Pensou o rato Salvador, que permaneceu calado o tempo todo, com medo da ira do grande gato persa. O jovem gatinho, que se chamava Charles, em homenagem ao príncipe Charles, contou a seus pais a história de seu salvamento e da valentia do rato Salvador, que se atirou nas revoltas águas do rio para salvar a vida de um inimigo de sua espécie. Oferecendo suas costas como tábua de salvação.

_Foi isso meu pai, que esse imundo rato de esgoto fez! Arriscou a sua vida, para salvar a vida de um legítimo gato persa, que há essa hora e sem a sua ajuda, nada mais seria. A não ser um cadáver de um gato morto qualquer, boiando nas águas do rio. Disse o gatinho com ironia. Porque apesar da pouca idade era muito inteligente.

O gato Bóris, envergonhado, abaixou sua cabeça, e humilde, pediu desculpas a Salvador, oferecendo sua eterna amizade.

_Agora tenho uma dívida de gratidão com vocês. Quero que contem com minha proteção e amizade para sempre. Jamais os desampararei, estarei sempre por perto para defender vocês de todo o mal. Serei seu salvador, da mesma forma que foram para o meu filho. Disse o gato, que apesar de esnobe, era justo. Uma amizade ali foi selada para sempre.

E assim o jovem casal de ratinhos puderam se casar em paz e com a bênção de toda a fazenda. Charles, o gatinho, foi o padrinho de Salvador, seu eterno amigo. Sua mãe Mercedes, foi madrinha de Benedita, que ficou uma graça com um lindo vestidinho branco, presenteado pelos padrinhos. O gato Boris, fez às vezes de padre, e usou até batina preta. Os dois ratinhos viveram felizes na fazenda para sempre. Tiveram dois lindos filhos, que depois de adultos, formaram uma dupla sertaneja. Fizeram muito sucesso e ficaram ricos e famosos. Até hoje, eles ainda fazem shows pelos becos e esgotos em todo Brasil.

O jovem Charles entrou para a política e atualmente é um deputado estadual muito honesto. Coisa rara nos dias de hoje. Ele luta por direito iguais entre gatos e ratos. Ainda não se casou, mas dizem as boas línguas que ele se apaixonou por uma linda ratinha que vive na cozinha da fazenda. Verdade ou não, o certo é que o mundo ainda não está preparado para uma união civil entre gato e rato.

E o casal de ratinhos, Salvador e Benedita, agora bem idosos, puderam encontrar a felicidade, quando saíram à sua procura. Hoje, estão pensando em escrever um livro contando a sua história. Por sinal, uma linda história de amor, que aconteceu entre um feio e solitário rato de esgoto e uma delicada hamster de laboratório.

Fim

Síria Malta

Siria Malta
Enviado por Siria Malta em 15/02/2019
Reeditado em 03/04/2019
Código do texto: T6575729
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