BONEQUINHA DE PANO
Eu sou uma boneca muito bonitinha e engraçada. Eu vivia presa no quarto e, infelizmente, não conhecia nada.
Na hora de dormir, a minha senhorinha sempre me agarrava, cantava músicas de ninar e dormia comigo ao seu lado.
Todos os brinquedos do quarto conheciam o mundo lá fora, desde os brinquedos feitos de pelúcia, até os feitos de plástico...
Mas, eu, feita de pano, com recheio de macela, vivia naquele mundinho apenas esperando a noite para dormir ao lado da minha pequena senhora.
Eu vivia imaginando como era o mundo lá fora. E o maior mistério era que a maioria dos brinquedos ia para fora daquele quarto e nunca mais retornava.
Eu pensava:
- Será se o mundo lá fora era tão bom! Por que alguns brinquedos daquele quarto iam com a minha senhora ou com alguém daquela casa e nunca mais voltavam?
Eu não sabia que o mistério estava no simples fato de eles serem doados ou às vezes lançados no lixo, lá fora.
À noite, na cama, a minha pequena senhora às vezes pegava um livro, abria e o lia, comigo no colo, mostrando-me as gravuras de jardins com flores, pássaros, borboletas e colibris dourados.
Aí, quando eu dormia, eu sonhava passeando pelos jardins, brncando entre as flores, como se eu fosse um colibri, toda elétrica, correndo entre os canteiros dos jardins...
Mas quando eu acordava e me via deitada ali, presa nos braços da minha senhora, coitadinha de mim. O quarto era o único mundo que eu conhecia...
Eu pensava na minha cabecinha de macela:
- Quem não gostaria de conhecer o mundo? As histórias dos livros diziam que ele era vasto, variado de coisas curiosas e sem fim...
O tempo foi passando e a minha senhorinha foi crescendo e, aos poucos se afastando de mim. Eu ficava no armário, feito um bibelô ou objeto de pouco valor, juntamente com os outros brinquedos esquecidos por ela.
A minha senhorinha, na cama, ficava apenas com o seu telefone móvel conversando com os amigos ou ouvindo músicas com um fone de ouvido, sem pelo ao menos dá boa noite para mim ou aos outros brinquedos. Isso não foi tudo!
Um dia chegou ao quarto da minha senhora um computador, presente de natal dos pais dela. Quando isso chegou ao quarto, nós, brinquedos, escutávamos apenas o tilintar do teclado. Ela passou a dar confiança apenas aos amigos que estavam do outro lado, chamada de rede social, quais, estavam longe do nosso quarto, da nossa casa, da nossa cidade, enfim, longe do nosso mundo. Ela dizia estar globalizada. E nós, brinquedos, ali, mudos, calados, apenas esperávamos um gesto dela para mudar os nossos destinos. Éramos fracos concorrentes de uma tecnologia assustadora.
Não demorou muito tempo e a pequena senhora, dona do nosso destino, desprezou a todos nós, brinquedos. Ela, sem consultar o sentimento, foi, aos poucos, desfazendo-se de alguns brinquedos. Numa bela tarde, chegou a vez de desfazer-me. Ela catou-me pelos braços de qualquer jeito, arrancou-me do quarto e colocou-me dentro de uma cesta de lixo, fora da casa dela. Eu fiquei ali, tão triste, tão humilhada. Pensei.
- A minha pequena senhora havia perdido a razão?
Mas como Deus existe para todos e até para os brinquedos, naquela mesma tarde passou por aquela rua uma bondosa senhora, que, ao ver me jogada no lixo, teve pena de mim e acolheu-me naquela hora, levando-me de presente à filha caçula. A filha caçula dela, que se chamava Martinha, dizia sonhar em ter uma boneca de pano igualzinha a mim...
Martinha, ao me receber, quase não acreditava na realização do sonho dela. Ela não quis saber de onde eu vim ou de quem eu era. Ela pegou-me com carinho e cuidado dando-me alguns tratos e tornando-me uma boneca nova, quase recém saída de uma loja. Dali por diante, ela nunca mais me tirou dos braços. Ela apresentava-me às amigas, levava-me aos aniversários das colegas, à igreja, aos parques, aos jardins e às vezes à escola.
Quando chegava a noite, Martinha me agarrava, contava-me lindas histórias extraídas dos contos de fadas. Dessa forma, todas as manhãs eu acordava tranquila e segura, sem nunca me assustar com os brinquedos que de lá saíam, pois todos ali, logo retornavam.
Se eu sofresse qualquer leve acidente, a ponto de ser socorrida, a minha “mãezinha” querida pegava a agulha e a linha e me costurava, imediatamente. Ela fazia uma cirurgia melindrosa, tornando-me nova, tanto o corpo, quanto a alma.
Como toda boneca de pano, eu também trazia no meu corpo alguns remendos, fazendo a todos se lembrar da “Emília”, do “Sítio do Pica-Pau-Amarelo”, criada por Monteiro Lobato. E, portanto, a Martinha, minha doce “mãezinha”, passou a me chamar com esse nome.
Entre algumas fotografias expostas nos porta-retratos no quarto e na sala daquela casa, estava eu, a bonequinha Emília, agarrada nos braços da minha “mãezinha”, Martinha. Isso me deixava tranquila, pois se algum dia eu fosse novamente esquecida, ficariam ali, sem dúvida, algumas das minhas histórias registradas nas fotografias e também nas memórias de Martinha.
Martinha, embora fosse pobre era dotada de sentimentos nobres, capaz de nunca desprezar os seus brinquedos de infância e tudo o que ela amou um dia...
Eu, Emília, uma simples bonequinha de pano, feita de macela e toda remendada, jogada um dia no lixo, tornei um grande amor na infância de Martinha.
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