"ERA UMA VEZ ... " ( Ou duas , ou três ? ) - A BARATA PATRÍCIA

No meio da Grande Floresta Mãe Natureza , por entre árvores centenárias, havia um enorme buraco , em nada parecido com aquele, do formigueiro . E nele , morava uma família muito especial . Uma família de baratas , tão centenária quanto as árvores que a cercavam . O pai , cascudíssimo , senhor Otaviano Quitanino . A mãe, branquíssima , Dona Nubiana . E a filha , bem serelepe , Patrícia. De certo que o enorme buraco era lá muito quente e escuro, sim . Mas isto fazia parte do habitat , desde os mais antigos . Tratava-se de preservação da espécie . E Patrícia , como não poderia deixar de ser , terminara por encantar-se com a Cidade dos Chinelões. Oh , triste encanto , este ... A mãe já lhe falara a respeito dos perigos . O pai já lhe tinha imposto milhões de castigos , dadas as travessuras , ora indo e vindo através do caminho para o enorme buraco de casa . Mas qual , nada adiantava . Patrícia , barata novinha , de asas a sacudirem a muito poucos anos , simplesmente não desistia . Queria conhecer a tal cidade , passava os dias e as noites a suspirar no parapeito da janela . “Pobre baratinha que nada sabe do quê sonha..."

Eis que num belíssimo dia de chuva grossa e sol batido fervendo por sobre toda a superfície da Terra , Patrícia aproveita a distração com a porta aberta e saí , disparada , para o meio da Grande Floresta, sem olhar para trás . Mesmo que não parando de voar baixinho , ainda escuta a voz da mãe , soluçando , pedindo que ela volte . Mas Patrícia vai , agora um pouco mais alto , observando as delícias de poder voar além da varanda de casa . Exausta , pousa num galho de árvore e já ensaiava dobrar as asas quando avistou um enorme tigre . Teve medo ? Não ! A baratinha herdara de seus ancestrais a coragem . E , mais que depressa , do tigre aproxima-se , perguntando qual seria o caminho para a Cidade dos Chinelões . “ Por quê desejas ir até lá , baratinha ? Não sabes que os Chinelões são monstros perigosos ? Eu , por minha vez , não me atrevo a chegar perto . Já fui aprisionado , jogado num zoológico a definhar , por conta das saudades que tive da minha família , do meu lar “ . Patrícia, então , contou-lhe a respeito dos sonhos que teve ao longo dos seus duzentos anos . E da vontade que lhe nascera , ferrenha , de desafiar os perigos daquela cidade , como um dia fizera o seu trisavô , Barbário Quitanino . “ Bom , se assim diz o teu coração , eu mesmo posso leva-la, agarrada à minha pelagem . Vamos , suba . Eu andarei rápido , como os ventos , e haveremos de chegar bem antes que o sol desapareça “ . E a viagem de Patrícia começou , encantada como ela , através da Grande Floresta , avistando lagos , gramados , florações , arvoredos centenários e bichos , muitos bichos , extraordinariamente diferentes dela , porém todos seus amigos , desde a sua infância . Na realidade , seus mantenedores , posto que de suas migalhas de comida viveu Patrícia e os demais , de sua família e para trás . O tigre a deixou num pé de muro , um pouco roto , com um buraco apertado de entrada , despedindo-se mas alertando que a esperaria .

De súbito , poucos metros depois de sua voada , apareceu-lhe um Chinelão , atrevido e nervoso . E Patrícia foi jogada de um lado a outro , ficando tonta . E o tal , cruelmente insatisfeito , deu-lhe uma baforada em névoa , veneno poderoso que a derrubou ao chão , paralisando as suas patinhas e asas . Patrícia ficou jogada a um canto , tendo sido empurrada por um instrumento medonho , já de seu conhecimento porque seu trisavô lhe contara : uma vassoura . E estava assim , entregue à própria sorte , esperando por seu esmagamento iminente quando um passarinho , piedoso , a recolheu com o bico e a levou para a janela . O tigre ainda viu Patrícia sendo jogada ao vento , indo cair no mesmo pé de muro por onde tinha entrado . “ Ah , pequena ... Quanto te custou a aventura”. Aproximou-se dela , arrebanhou-a com a pata enorme , pondo-a de volta à sua pelagem . E , novamente , pôs-se a correr , igual aos ventos , chegando à beira do enorme buraco antes que o sol desaparecesse . Patrícia acorda , assustada . Seu Otaviano e Dona Nubiana estão ao seu lado , preocupadíssimos , querendo saber por quê a filha se desmandara , saindo porta a fora , na direção do perigo. “ Pai ... mãe ... eu só queria conhecer o mundo lá fora . Tantos anos ouvindo o vovô , deu vontade de arriscar . Mas eu prometo , nunca mais voar para além da varanda . Nunca mais .”

Agora , dentro da Grande Floresta , no fundo de um buraco enorme , quente e escuro , vive uma família de baratas centenárias . Longe dos chinelos , das vassouras , dos sprays de inseticida , a juntar as migalhas de comida e perpetuar a espécie . Patrícia descobriu que a sua importância não estava no desafio ao perigo das cidades mas no abandono de sua missão no planeta Terra : a própria existência .

( Dedicado às infâncias de Felipe e Luíz Fernando , o ouro que amealhei neste planeta )

Josí Viana
Enviado por Josí Viana em 09/01/2012
Reeditado em 10/01/2012
Código do texto: T3430824
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