Jogatina
“Ser ou não ser, eis a questão”, a célebre frase de Shakespeare dita por Hamlet na peça homônima encerra um axioma aristotélico, o de que não se pode ser algo e não sê-lo ao mesmo tempo, ou seja, logicamente você não pode estar morto da silva e ao mesmo tempo estar vivinho da silva, por exemplo.
Mas no mundo real tudo é possível porque um sujeito pode mandar matar alguém ou ele mesmo matá-lo e depois dar-se como morto no lugar dele, assumindo sua identidade etc. Já vimos isso no cinema e também na crônica policial, não? Nessas horas sempre me lembro do meu amigo o delegado Leonardo Nordmark, um implacável homem da lei.
Ele dizia não haver o crime perfeito porque um dia as coisas podiam ser descobertas e aí o falsificador de cadáver iria se dar muito mal, passar um longo tempo na cadeia. Ou não, porque estávamos no Brasil, conforme Nordmark também gostava de lembrar. E dizia: aqui a polícia prende e a justiça solta, então pode roubar à vontade. Daí que ele abominava um ministro da Suprema Corte, inimigo de operações contra corruptos, que soltava todo mundo, especialmente os amigos, que ficou conhecido como Lacto Purga, ou Beiçola, para os íntimos.
Para o meu avô, um homem sábio a quem não puxei, se a justiça vai muito mal no Brasil, a filosofia também não vai bem, porque este não é um país sério, muito antes de o presidente francês De Gaulle ter ou não dito isso. Daí que nem a filosofia de Aristóteles nem o teatro de Shakespeare são levados muito a sério por aqui. O que se verifica facilmente através do sucesso das inúmeras comédias stand up em cartaz. Contra as quais ele nada tem, nem eu também e até já fomos juntos ver (ouvir) algumas.
Vovô lembra que nos tempos do Cassino do Chacrinha o apresentador acabou com muitos axiomas, especialmente com aquele de que alguém ou algo não pode ser duas coisas ao mesmo tempo, quando cantava, nos anos 1980, uma marchinha carnavalesca que dizia sobre um mulherão ser ela Maria de dia e de noite ser João. Meu avô diz ter muitas saudades daquele tempo, mesmo que não fossem tempos tão generosos assim, pois o país vivia sob ditadura militar.
Não há mais ditadura naqueles moldes, nem cassino do Chacrinha faz tempo e muito menos marchinhas de carnaval homofóbicas ou coisa parecida. Tampouco tem jogatina legalizada neste momento, somente clandestina, mas há projetos no Congresso para que o jogo seja liberado no país, como se sabe.
O monopólio do jogo pertence ao governo há várias décadas através de inúmeras loterias nas quais podemos apostar nas lotéricas, onde mais? Ah, também se pode jogar no bicho e nem é preciso lá muito discrição quando for fazer a fezinha, não é mesmo?
De volta a Aristóteles, àquela coisa shakespeariana de ser ou não ser, e pensando também na futura liberação da jogatina por aqui, ao contrário do que pensamos uma máquina caça-níqueis é um equipamento que encerra em si mesmo um axioma, e não apenas mecanismos, moedas ou fichas de jogo.
Nesse jogo, nossos níqueis são a caça e a máquina o caçador, senão ela teria outro nome (solta-níqueis, qualquer coisa assim). Sabemos que todo dia é dia de caçador. Dia da caça é somente de vez em quando, raramente.
E mesmo assim, exceto os suicidas, apostamos na vida, pois somos humanos. Mas como não descendemos diretamente de Aristóteles ou de Shakespeare, homens geniais, ao mesmo tempo em que somos humanos, quando nos deixamos trapacear por uma máquina caça-níqueis, também somos um tanto burros.
Por sorte, burro não é caça.
A não ser de carcará.
E como os carcarás não estão em extinção, então, muita atenção.
Senão ele te pega, mata e come!