O processo legal - escrito por Zeca Quinha, para o Zeca Quinha Nius
Na noite de ontem, às duas horas da madrugada, os menores T.N.C.B.C. e P.Q.P.C.M., impelidos por um desejo de corrigir as injustiças sociais das quais foram vítimas, cientes de que a sociedade brasileira infligiu-lhes, nos dezesseis anos de vida que eles mal viveram nas comunidades periféricas das caóticas metrópoles urbanas em cujas ruas e avenidas trafegam automóveis, símbolos capitalistas do consumismo ocidental e da irresponsabilidade ecológica, agentes poluidores e causadores do efeito estufa e do aquecimento global, fenômeno, este, cataclísmico, que culminará na aniquilação da vida na Terra, decidiram transpor o muro da discórdia, da opressão, da segregação social, étnica e racial que os mantêm afastados dos bens de consumo com os quais sempre sonharam, mas dos quais a sociedade brasileira sempre os manteve afastados, da rua passando para o interior de uma propriedade, que é um roubo imposto, pela classe privilegiada, à classe desprivilegiada. E no interior da propriedade da casta opressora, avançaram os menores, empunhando revólveres, andando, nas pontas dos pés, tranquilamente. De repente, atacaram-los dois cães imensos, ferozes, ensandecidos, descontrolados, com fúria nos olhos, e ódio mortal nos latidos, que ecoaram como explosões de artefatos bélicos, assustando-os; e os menores T.N.C.B.C. e P.Q.P.C.M, aterrorizados, surpreendidos pelo avanço injustificável dos cães – instruídos, estes, pelos seus donos a atacarem qualquer cidadão que adentrasse a casa, na calada da noite, para reivindicar compensações pelas injustiças que a sociedade brasileira lhes inflige -, apavoraram-se, perderam o auto-controle e, com os nervos à flor da pele, à aproximação das duas alimárias demoníacas que babavam de ódio, apertaram, involuntariamente, o gatilho dos revólveres que empunhavam com mãos trêmulas de menores desnutridos das comunidades periféricas das raças injustiçadas, e dispararam projéteis; para tristeza deles, um dos projéteis que P.Q.P.C.M. disparou atingiu T.N.C.B.C. no ombro direito. E os cães, movidos pelo ódio insano aos membros das classes sociais inferiores, sem que nenhum projétil os houvesse atingido, seguiram de encontro aos menores, cujo córtex pré-frontal ainda não está inteiramente desenvolvido, e os atacaram, e os morderam, ferindo-os. Os dois cães eram enormes; pesavam, um, setenta e sete quilos, o outro, setenta quilos; e os dois menores pesavam, T.N.C.B.C., cinquenta e quatro quilos, e P.Q.P.C.M., cinquenta e um quilos. E os cães, ferozes, usaram de força desproporcional contra os menores. Impeliam os cães a vontade de matar; agiam, na alma dos menores, o desejo de corrigir injustiças sociais. Em sua fúria homicida, os cães dariam cabo da vida dos menores se o proprietário da casa, Benedito Carlos de Oliveira Souza Figueira Nogueira Macieira e seus dois filhos, Paulo Roberto de Oliveira Souza Figueira Nogueira Macieira e Roberto Paulo de Oliveira Souza Figueira Nogueira Macieira, não os contivessem.
Encaminhados à delegacia, o delegado abriu inquérito para apurar o caso. Um representante da Defesa dos Menores processou Benedito Carlos de Oliveira Souza Figueira Nogueira Macieira por incitamento ao ódio canino e posse de dois instrumentos, os cães, letais, que poderiam vir a provocar, se Benedito Carlos de Oliveira Souza Figueira Nogueira Macieira os conservasse em sua posse, a morte de algum cidadão reivindicador de compensações legítimas. O imbróglio estender-se-ia, indefinidamente, se um representante da Instituição da Paz, informado do caso, não interviesse e não chamasse Benedito Carlos de Oliveira Souza Figueira Nogueira Macieira, que perdia as estribeiras, à razão. Sentaram-se à mesa o delegado, o representante da Defesa dos Menores, o representante da Instituição da Paz e Benedito Carlos de Oliveira Souza Figueira Nogueira Macieira. E após quatro horas de negociações exaustivas e desgastantes, ficou estabelecido, em consenso, para se evitar a aplicação de mais uma injustiça contra os menores P.Q.P.C.M. e T.N.C.B.C. e a prisão de Benedito Carlos de Oliveira Souza Figueira Nogueira Macieira, o sacrifício dos dois cães, que, ferozes, assustadores, intimidadores, impedem menores de idade de exercerem o direito à reivindicação de compensações aos sofrimentos que a sociedade brasileira lhes inflige, e a aquisição, por Benedito Carlos de Oliveira Souza Figueira Nogueira Macieira, de um cão de pequeno porte, inofensivo e pacato. E todos os envolvidos no caso ficaram satisfeitos com o resultado.
À porta da delegacia, o representante da Instituição da Paz declarou aos jornalistas:
- Evitamos conflitos desnecessários. Explicamos ao senhor Benedito Carlos de Oliveira Souza Figueira Nogueira Macieira a importância da solução pacífica do caso. E todos saímos ganhando. Logramos sucesso. A sociedade só tem a alegrar-se.