Maus pensamentos

Aí você está sozinho em casa, a lareira acesa,o cachorro deitado aos teus pés,Noturnos de Chopin na vitrola e você depois do quarto conhaque começa a pensar...

É claro que você volta ao passado e se compara ao estrago que o tempo fez em você até hoje.Uma boa parte dos teus cabelos te abandou,o que não se pode dizer dessa massa de gordura que se abraça à sua cintura e insiste em aumentar.

Então você começa a pensar que hoje em dia ninguém te entende mais.Que o tempo passou pra você.

Todas a grande variedade de músicas que você gosta estão tão fora de moda como as suas idéias.Lupicínio,Ari Barroso,Noel,sem falar de Bach,Chopin,Mozart,Astor Piazzolla,que para muitos,seus filhos inclusive, são jogadores de futebol.

Você está naquela fase de quase tudo que fala começa com um “no meu tempo...”

A tua auto-estima está cada vez mais baixa.É claro que você continua sendo aquele maior carente e para dramatizar um pouco mais, tira Chopin e põe o CD dos tangos de Astor Piazzolla enquanto entorna mais um conhaque no copo.

E é com este cenário que você começa a pensar mais uma vez na “solução final”.Sim, pois essa seria a única forma de você chamar a atenção, nesse teu “ninguém me ama,ninguém me quer”.

Mas é óbvio que você queria ser “encontrado” morto.Morrer assim de repente,de um enfarto ou pular de uma janela não causaria o impacto afetivo que você imagina causar em toda a sua família.

Por exemplo, morrer no chão da cozinha com um último pedaço de pizza na mão.”Coitado! pensaria a sua família,só de madrugada veio comer o que restou da pizza para que todos se alimentassem antes.Como ele era bom...”

Não,talvez um impacto maior.Morrer sentado no vaso sanitário com a Playboy jogada ao lado.”Coitado!(tem sempre que ter o coitado...),morreu num último êxtase tentando compensar a carência sexual e afetiva”.

Uma vez consumado o fato,daí sim,o velório.

Você no torpor do álcool já começa a imaginar a cena.Talvez sua mulher não chorasse tanto quanto você quisesse,nem fosse se descabelar,como você esperaria,pedindo para ser enterrada com você.E depois precisaria usar um vestido tão decotado,justo no seu velório?

E o Paulão que você pensou que sempre foi seu amigo, descaradamente viria consolar a sua viúva,confirmando as suas suspeitas de que ele,como você desconfiava, sempre arrastou uma asa pela patroa.E como ela dizia sempre: “Rei morto,rei posto” e você “do outro lado” rezando para fecharem logo o caixão senão com os cornos ficaria impossível.

O Aranha viria logo conversar com sua família falando que quando eles fossem vender a sua Mercedes ele estaria na fila.

E o Aderbal que você pensou que iria lamentar às pampas a sua morte,rindo e contando piadas pra todo mundo.

Você deitado no caixão e a sua filha preocupada com o namorado que não aparecia há dois dias,justo na sua frente que acabara de desaparecer pra sempre.

E na hora de segurarem o caixão para te levarem para sua “última morada”...

“Pô mas como este cara tava gordo,hein?”

“O peso maior deve estar naquela barriga de chope”

“Também,bebia como um gambá!”

Até que no momento derradeiro,uma vez baixado o caixão na vala ,alguém murmuraria com os lábios semicerrados: “Já vai tarde !”

É, de fato,você pára de pensar em bobagens e lembra daquela sua vizinha do 53,cheinha de amor pra dar, que quando te vê dá sempre uma piscadela e fala: “Oi fofo!”,e um sorriso maroto brota no teu rosto de garoto levado.