O comício do presidente
O comício já dura um dia inteiro. É menor do que aqueles organizados em eras mais prósperas. Os habitantes da cidade são contados na casa das dezenas de milhares. Decerto, o número de pessoas que acorre à praça para ouvir o pronunciamento não tem precedente na história da cidade. Para o presidente, porém, não é difícil ostentar a eloquência pela qual já era renomado. Já falara para plateias muito maiores. Ele discursa em cima do palanque, uma folha de papel na mão. Checa-a de quando em quando, mas não perde de vista os seus ouvintes. Às vezes, para para enxugar a testa. Atrás dele, um cartaz, de onde se projeta a sua imagem prazenteira a apertar a mão de dois operários igualmente sorridentes. Sua amabilidade abarca a nação inteira, encabeçada por um letreiro, BOTA O RETRATO DO VELHO OUTRA VEZ. O presidente não parece se importar em deixar escapar gotículas de saliva. Somadas a veia que se destaca em sua testa, elas passam uma impressão de labuta. Uma multidão o assiste, alguns carregam faixas, outros o aplaudem de espaço a espaço. Não se enganem, eu sou o único que compreende o espírito do povo, ele fala. Apenas eu entendo os seus sofrimentos, pois eu já padeci de todos eles também, eu já fui como um de vocês. E isto você não vê em nenhum membro do Congresso, todos nasceram em berço esplêndido, e é por isso que eles jamais poderão conceber as dores do trabalhador brasileiro, têm coisas na vida pelas quais você tem que passar pra entender. Segue-se uma salva de palmas. No entanto, logo se restaura o silêncio, interrompido por um burburinho que não prejudica a acústica. Distingue-se nele um ruído surdo de insatisfação, insultos espaçados, nossa senhora, pede licença pelo menos, como tem gente sem educação. Uma mulher se acotovela nas fileiras mais próximas à estrutura de madeira que suporta o peso do presidente. As pessoas se viram para ela, franzem o sobrecenho, algumas rosnam e murmuram, mas a deixam passar. Alguém pergunta se ela vai tirar o pai da forca, o que provoca algumas risadas. A mulher sua, o seu rosto está vermelho. Pelo amor de Deus, presidente, me ouve, você precisa me ouvir. Ela grita por um tempo até ser notada. O presidente se vira para ela e pergunta, O que foi, minha filha. Pelo amor de Deus, presidente, você tem que me ajudar. Pois diga, responde ele, abrindo um sorriso tão largo quanto o do cartaz. Um velho elogia a bondade do presidente para um militante que estava à sua frente. Isso sim era líder de verdade, não era que nem esses outro que parece que tem nojo de pobre. Sim, ontem ele não fez comício lá no pátio da Companhia Nacional de Álcalis, na usina da CSN, ele não tem problema nenhum em se misturar com o povão. Se não me falha a memória, ele foi na FNM, o meu irmão trabalha lá e disse que ele até apertou a mão dele. A FNM, concorda o militante, adicionando o novo item à lista de fábricas que o presidente havia visitado. Um general obeso, que até agora se mantivera a esquerda do presidente no palanque, arruma um microfone para a mulher. Ela não precisa mais gritar, mas o seu tom de voz ainda é muito alto considerando que o seu timbre é ampliado em mais de duzentas vezes pelas caixas de som nas retaguardas. Presidente, eu não aguento mais, eu tô a ponto de explodir. Me explique, minha filha, o que está acontecendo, responde o presidente. Senhor, eu já não tenho mais vontade de fazer nada, eu tenho tido fantasias suicidas constantes, a apatia me esmigalha o mundo inteiro na minha frente, eu não consigo me livrar desse tédio que me corrói como um verme. O presidente ouve. A princípio, não esboça reação. A boca permanece entreaberta por um tempo, o olhar percorre o que quer que esteja ao seu redor. Seus correligionários o abandonam em um momento tão crucial. Eles dão de ombros, seus lábios se curvam para baixo, os queixos se tensionam, os lábios inferiores se sobressaem sobre os superiores, exprimindo a ausência de qualquer sugestão aproveitável. Talvez desejem se eximir da obrigação de apresentar-lhe alguma saída, talvez nem estejam interessados na resolução do problema. Se o presidente percebe isso, porém, não desanda em repreensões. Não há tempo. Tendo o dilema se apresentado na urgência do momento imediato, precisa encontrar uma saída o quanto antes. Ele gagueja um pouco. As pessoas se entreolham, mas apenas por alguns segundos; voltam-se logo para o presidente. Nossa, quem é essa louca, questiona aquele militante que mantivera um colóquio com o velho atrás dele. Sei lá. A resposta desnecessária vem da sua esquerda. Não se vira; mantém os olhos no presidente. Ele ainda gagueja, pelo menos até a sua fisionomia acender-se com uma luz epifânica. Empertiga-se e põe-se a falar. Minha cara, não pense que você é a única. Todo o generoso operariado brasileiro padece da mesma angústia. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grandes grupos econômicos internacionais, que sugaram nosso sangue e deixaram a nossa carcaça exangue para os banqueiros dilacerarem, enfiarem as suas garras, qual trabalhador desanda em mostras de alegria, se toda a nossa ventura é sacrificada em prol do enriquecimento obsceno de outrem, que come e bebe o fruto do nosso suor. Que sorte de canalha não se sentiria miserável ao ver a sua nação chafurdando em dissídios estéreis e pessimismos entorpecentes, ver o projeto que objetivava tirá-la da fossa terceiro-mundista sendo vilipendiado por uma mídia golpista e entreguista. Os aplausos parecem que nunca irão acabar. Quando diminuem, alguma viv’alma os instiga novamente. Isso consome alguns minutos. A mulher se apressa, nem espera o burburinho morrer para voltar a falar. Presidente, senhor, eu já não sinto mais prazer com nada, eu já passei dias inteiros sem sair da cama. Eu sinto que o meu coração não vibra mais, minha cabeça quase não pensa mais. Meu marido economizou durante sete anos pra me levar pra as Cataratas do Iguaçu, e eu voltei de lá como tinha chegado, senão pior, pois tive certeza que a vida me poupava todos os deleites que ela reserva às pessoas comuns. Ouviram isso, ouviram isso todos, pergunta o presidente, esse é um exemplo de cidadã, mesmo com dificuldades financeiras, mesmo talvez tendo outros lugares em mente que gostaria de visitar, ela decidiu contribuir com a indústria turística nacional, que tem se mostrado um importante bastião na recuperação econômica do nosso país. Essa é a atitude positiva que os cidadãos deveriam tomar em face dos períodos difíceis que enfrentamos, resistindo ao derrotismo apregoado dia após dia pela imprensa e por partidos que fazem oposição ao Brasil, à nossa pátria cristã, formada e modelada segundo as lições divinas do Redentor. Novamente, a ovação. A fala é aclamada por todos. Contudo, é difícil ignorar o desconforto geral. Que diabo essa mulher tá falando, um metalúrgico questiona o seu colega, É cada um que aparece, ela não vê que tá atrapalhando o presidente, o colega pragueja. Ah, mas é sempre assim, sempre tem uns doido que vai incomodar o presidente, não dizem que teve aquele cara que foi pedir dinheiro para o presidente no meio do comício. É, eu tinha ouvido falar dessa, como o povo é sem noção, né. Uma dona de casa assinala para a sua comadre, Aí depois tem gente que reclama que apanha da polícia, coisa, mas aí vai lá e faz essas coisa, É óbvio, né, alguém tem que manter a ordem, se não vira baderna. Também há rumores no palanque. O ministro da agricultura vocifera para o ministro da aviação e obras públicas, Que que essa mulher tem na cabeça, comício não é lugar de ficar falando essas coisa, Claro que não, intromete-se o ministro da guerra, eu não tinha uma joanete que me doía até a alma na época do mandato do Arthur Bernardes, mas se eu fosse reclamar disso com ele, ele ia é me dar um pontapé na joanete pra doer ainda mais. Naquela época é que tinha respeito, ninguém ia tentar umas besteira dessas não, lamenta-se o ministro da aviação e obras públicas. O ministro do trabalho, comércio e indústria diz que tinha que parar com esse negócio de ficar passando o microfone pro povo, que é por isso que acontece esse tipo de coisa. O ministro da aviação concorda em gênero, número e grau. É claro que o presidente tem que trabalhar a sua imagem com o povo e et cetera, mas tem que entender que tem todo o tipo de gente no mundo, e sempre vai ter gente que aproveita os eventos públicos para falar essas coisas inapropriadas. O ministro da agricultura meneia a cabeça em concordância. Como que apenas para contrariá-los, o desabafo da mulher recomeça. Senhor, eu não sinto mais prazer com nada, eu não consigo me distrair da minha angústia porque o mundo inteiro já se tornou vazio pra mim, na verdade, quando estou acordada, eu não sinto mais o mundo ao meu redor, parece que nada é real, o que eu faço para sair desse pesadelo. As reclamações começam a ser manifestadas aos berros, Que merda é essa, Tira essa louca daí, alguém arranca o microfone da mão dela. Aquele mesmo militante protesta que, se fosse para ficar ouvindo sandice, ele ficava em casa, conversando com a sua mãe. Gargalhadas. Pois eu ia pro manicômio, não tem um manicômio aqui perto, é só descer a rua. Risos. Isso quem sugere é o velho que elogiara a bondade do presidente. Ele se encontra separado por uns bons metros do responsável pela tirada matricida, o que sugere uma metástase acelerada da impiedade dos deboches. Aposto que essa mulher saiu correndo do manicômio, devem ter esquecido de trancar as porta. Gargalhadas. O presidente titubeia um pouco, chama a atenção dos mais piadistas, pede silêncio. Seu semblante austero consegue diminuir o ruído. Meus filhos, isso não é motivo para galhofa, o que vemos nas palavras dessa cidadã é o efeito nefasto e abominável da propaganda bombardeada dia e noite por politiqueiros que, expulsos do poder, resignam em tentar inocular-me o veneno das difamações e calúnias. Transformam um momento de dificuldade em um cenário verdadeiramente apocalíptico; ressoam, uma a uma, as sete trombetas do Armagedom, anunciando um colapso econômico que nunca chega. Antegozam a catástrofe, sorvendo-a antes mesmo de ocorrer. Não se enganem: eles não fazem oposição ao meu governo, fazem oposição ao país. O seu pessimismo sombrio não é fruto de uma análise ponderada das condições que nos cercam; é, sim, um discurso ajustado aos interesses do imperialismo internacional, que, em seu afã de reduzir-nos a uma posição de subserviência, busca inculcar-nos um abominável complexo de vira-lata, fazendo-nos pensar que, se não podemos cuidar de nós mesmo, releguemos esta tarefa às nações desenvolvidas, às multinacionais, aos burgueses que fumam os seus charutos Havana em Washington, Londres ou Berlim. Sim, esses sabem o que é melhor para nós. Mordemos o fruto proibido da emancipação econômica; como consequência, fomos expulsos do nosso Éden, o Paraíso da irrelevância internacional, da cega obediência às diretrizes dos fundos monetários, da metafísica de não pensar em nada, pois eles pensariam por nós. Os udenistas e os lacerdistas são rápidos em clamar pela divina punição a este delito: o colapso, a inflação, o desemprego; todos estes horrores sairão da caixa de Pandora para flagelar-nos. O presidente continua a falar, concentrado no som de suas palavras, canalizando o ódio que aquela interrupção inoportuna engendrara em todos. De vez em quando, as aclamações o interrompem: Vargas, Vargas, Vargas, bradam os trabalhadores. Quando isso ocorre, ele cessa as acusações à canalha entreguista e os louvores à pátria abraâmica ou monoteísta ou crente ou piedosa ou qualquer outro termo do qual ele faz uso para não repetir a palavra cristã. A eloquência não exclui a beleza do estilo; antes, a pressupõe. Findas as agitações que se sobrepunham à sua voz, retoma o curso do pensamento. O ministro da aviação comenta que a sua expressão mudara, o presidente parecia estar meditando acerca de um problema urgente e buscando a sua solução. O presidente prossegue com o discurso, mas não dá para deixar de notar que agora as suas sobrancelhas pairam pesadamente sobre a testa, que todas as suas linhas de expressão se acentuam em uma expressão meditabunda. A sofredora está calada até agora, mas o seu silêncio não dura muito, para a exasperação do presidente. Logo, ela põe-se a gemer a sua dor, expandindo a descrição do seu quadro clínico. Diz que todas as suas interações sociais passaram a ser uma farsa, pois na verdade ela se sentia completamente entediada com tudo, mas tinha que fingir que se importava com as coisas apenas para as pessoas não se afastarem dela. Diz que o que ela sentia talvez nem fosse mais tristeza, mas uma névoa que encobria tudo, que não a permitia sentir nada. A sua novela favorita no rádio não tinha mais nenhuma graça, os beijos do seu marido tinham um gosto amargo, ela nem mesmo conseguia cuidar dos seus filhos. A mulher se via forçada a refugiar-se no seu quarto, chorando dia sim, dia não, incapaz de sair, incapaz de cumprir a obrigação de viver, já que a vida se mostrava sem qualquer atrativo, esmagando os seus ossos com o peso atroz de uma existência sem encantos. A poesia da sua descrição trai certo refinamento literário, o que encolerizava ainda mais algumas pessoas, que veem nisso a evidência de uma vida ociosa de leituras e de uma artificialidade tétrica. Os homens falam dela como se a odiassem por uma vida inteira, Olha lá, já tá falando de novo, e nisso já se passou o quê, questiona um operário, checando o seu relógio de pulso, uns dez minutos; Essa mulher é uma exibida, brada uma senhora rechonchuda com marcas de suor embaixo das axilas, vem aqui e se acha no direito de pegar o microfone pra ficar choramingando essas palavra difícil. Eu vou te dizer, recomenda o velho que conversara com o militante, essa daí precisa sabe do quê, de uma pia cheia de louça pra lavar, aí eu quero ver se ela vai ficar entediada. Esta prescrição agrada muitos, despertando algumas manifestações de concordâncias. Há um que se mostra mais solícito, diz que tem uns pratos sujos em casa se ela quiser. A dona de casa cita o chão emporcalhado, a poeira das cortinas, quem sabe até a fralda cheia de bosta do bebê. Se quisesse fazer umas sessões de terapia na casa dela, seria de graça. As gargalhadas já são contidas, pois o presidente se mostra profundamente incomodado. Ele pede silêncio. Suas exortações vão abrindo caminho entre o barulho infernal. O ministro da guerra se inclina sobre o ministro da aviação e lamenta a dificuldade de controlar uma turba. Este segundo diz que nós devíamos é mandar os seguranças tirarem o microfone da mulher, mas a ideia é rebatida pelo primeiro. A sua argumentação é convincente: se tomassem a iniciativa de calar a falastrona à força, estariam atropelando a autoridade do presidente, que optara pelo diálogo. Ademais, talvez a mulher se agarraria ao microfone – o que não seria improvável naquele estado de nervos -, e aí eles precisariam apelar para a brutalidade, e isso seria um desastre para a popularidade do presidente. O que é que se diria se soubessem que os seguranças do presidente deram uns safanões numa operária, imagina se a oposição soubesse disso, o inferno que não faria. Os demais ministros ouvem, taciturnos. Nenhum deles percebe que o calvário da mulher não sensibiliza a população; que, ao contrário, todos se sentem apoquentados com a sua inconveniência, com a sua intromissão, agravadas pela insistência com a qual ela continua a chorar aquelas dores tão etéreas, tão incompreensíveis. Alguns militantes a enxovalhariam com golpes de bandeira, se não temessem a repreensão das autoridades incrustadas no palanque. De fato, um velho sugere que dessem uns safanões na mulher e a chutassem para fora do comício. Um sindicalista o olha de soslaio. Responde que é melhor não, é melhor não tomar uma decisão tão brusca sem a anuência do presidente, que poderia se ressentir de um ato de violência contra uma operária. O velho se indigna, Operária porra nenhuma, você já viu algum trabalhador usar essas palavra difícil aí, essa daí só pode ter nascido em berço de ouro. Aposta quanto que é filha de latifundiário, provoca outro militante. Sua conjectura tem a aprovação do velho, Ah, só pode ser, eu não duvido nem um pouco que seja, não. A mulher não fala, olha ao seu redor assustada, o microfone na mão, como se tomasse nota pela primeira vez da hostilidade que a cerceia. Os que estão mais próximos dela a insultam, mandam-na calar a boca novamente. A ira e a eloquência são mutuamente exclusivas, e as ofensas vão saindo atropeladas, por vezes engolem as sílabas e cospem rosnados. Entretanto, nenhuma atitude é tomada. Todos temem desagradar o presidente. Se aquela mulher desagradável começara a arruinar o seu discurso, por certo a cena que se seguiria ao tentarem expulsá-la terminaria de fazê-lo. Eis o raciocínio que garante a segurança da mulher, pelo menos por enquanto. Mal sabem eles que o presidente gostaria de vê-la destroçada por todas as bestas-feras que povoam os campos, as florestas e os vales da pátria brasileira. Se povo e líder pudessem se comunicar diretamente, fazendo explícitas as suas volições, todos se uniriam para extirpar o cancro que corrói aquele momento de união nacional. Contudo, isto não é possível, e um não age por temor ao outro. O presidente encara a multidão, encara a mulher que lhe causava tantos problemas. Perturba-lhe a mesma lógica enunciada pelo ministro da guerra. Imagina os comentários das pessoas nas ruas, as manchetes dos jornais oposicionistas, todos cair-lhe-iam de pau caso não lidasse com o problema da forma adequada. Só Deus sabe qual seria a reação de todos se ele ordenasse uma medida mais enérgica, talvez simpatizassem com a transgressora, voltando-se contra o governo. Sua erudição o relembra de momentos na História em que isso ocorrera, em que a punição de um criminoso, sendo excessivamente severa, desperta nos espectadores a compaixão e a simpatia. Claro, a sua vontade era mandar a polícia arrancar o microfone das mãos da mulher, mas e se as pessoas se horrorizassem com o ato, voltando-se contra as arbitrariedades que ele encarava como prerrogativas naturais do exercício do poder. Aí haveria revolta, os arruaceiros aproveitariam a oportunidade. Não era necessário muito azar para que viessem uns integralistas e botassem o palanque abaixo com o apoio daquelas caras enfezadas. Já imaginava os homens à sua frente invadindo o estrado, arrancando tábuas de madeira com suas mãos duras. Os camisas-verdes materializar-se-iam a partir de seus pesadelos anauê; avançariam contra os ministros com metralhadoras nas costas anauê, apoiados por aqueles que, há pouco, morreriam como os varguistas mais convictos anauê. Seus soldados, naturalmente, seriam forçados a disparar contra a população para salvaguardar a sua integridade física, o que poderia ser o estopim de uma guerra civil em plena praça pública. Uma tarde que prometia tantas vitórias para a causa do trabalhismo terminaria em chacina, e o escândalo seria explorado sem descanso pela imprensa de oposição, daria matéria para um mês inteiro nos jornais, que entrevistariam até aquele gari lá atrás, que varre as folhas secas que se acumularam nas sarjetas; perguntar-lhe-iam se testemunhara o momento em que o presidente massacrara os seus próprios partidários. O presidente imagina o Lacerda a protestar contra o mar de lama e sangue que inunda o Catete. O desgraçado fala bem, desanca hipérboles e metáforas e estrangeirismos, todos a ressoar a mesma denúncia: o presidente é um assassino, não tem escrúpulos em atirar naqueles que ousam questionar a sua tirania. Compara-o aos déspotas de Roma, aos sultões da Arábia, aos fascistas europeus ou coisa que o valha. Os militares têm a desculpa pela qual tanto esperam, declaram o presidente inepto, marcham sobre o Rio de Janeiro exigindo a sua renúncia. Seria o caos. Inesperadamente, a sua fisionomia se ilumina com o prazer que espera os sábios ao final de uma longa reflexão, onde se insinua a resposta para um dilema há muito remoído. Ele limpa a garganta do pigarro, talvez apenas para ganhar tempo, e recobra a fala. A mulher ainda está com o microfone, devido à falha de comunicação entre o presidente e os seus ouvintes: há males que vêm para o bem. Conquanto o bem também seja questão de perspectiva, mas não nos percamos nos recônditos labirínticos da semântica; antes, escutemos o discurso do presidente, visto que a mulher já não fala, afundada em um silêncio apavorado, temendo os arroubos rancorosos daqueles que seu desabafo aborrecera. Brasileiros e brasileiras, em verdade vos digo que errei; por uma fração de segundo, a pusilanimidade, a fraqueza tomaram conta das minhas palavras. Um líder não deve ter vergonha de seus tropeços, não deve varrê-los para debaixo do tapete, longe da vista de todos. Admito o meu equívoco para que nele não resvalem também. A princípio, tomei esta mulher por uma vítima da conspiração planejada silenciosamente pelos donos da mídia e redatores dos principais jornais do país, que devem, eu não tenho a menor dúvida, usar os intervalos do almoço e do cafezinho para dividir entre si os espólios do golpe. A denúncia tem certo efeito sobre todos, alguns esfuziam palavras de apoio, outros amaldiçoam as figuras ocultas que se escondem por trás das difamações dos hebdomadários. O presidente volve, Contudo, enganei-me; somente agora me atento a detalhes que escaparam da minha percepção anteriormente. A vestimenta luxuosa dessa mulher, que ostenta uma opulência obscena; seu preciosismo na fala e uso desavergonhado de expressões obscuras para os membros da classe trabalhadora; e, finalmente, o seu comportamento extravagante e errático, claramente inapropriado para um evento público; tais indícios, enfim, convencem-me que esta personagem insólita, longe de identificar-se com os interesses da Nação, não é senão um desses jornalistas desonestos e perniciosos, fazendo-se presente apenas para sabotar um momento de fraternidade do povo com a autoridade nacional, que livrou-lhe dos ditames de clãs facciosos e caudilhescos e colocou-o no caminho do progresso – que, nos lembra o estandarte, pressupõe a ordem. Apenas os mais inocentes desconhecem a vileza da imprensa brasileira, que engaja-se continuamente em maquinações mesquinhas para desestabilizar o poder público. Eu não disse, eu não disse, gaba-se o velho, esta desgraçada é uma impostora, deve ter vindo aqui só pra fazer baderna, canalha. Essa daí é uma espiã, isso sim, sentencia um militante, deve ser uma dessas que fica lambendo as bota do Lacerda. O sindicalista pragueja a plenos pulmões, Onde já se viu, que audácia, a filha da puta vir aqui no meio do comício do presidente pra ficar falando merda. É um absurdo, queixa-se a dona de casa, eu não entendo por que que a gente deixa esses canalha pegar no microfone. Não obstante, o presidente levanta a voz para ser ouvido por cima das invectivas, que houvessem descido tão baixo, a ponto de ordenar a seus asseclas que se infiltrassem em meu discurso e armassem esta arruaça, isto é coisa que chega a me surpreender. Os arautos do golpe, no ápice de sua ingenuidade, cuidaram que encontrariam na massa proletária apoio ao seu projeto regressista e agrário, untado pelo sangue do trabalhador brasileiro. Admira-me o seu cinismo, que os leva a buscar partidários justamente entre aqueles que seriam os maiores prejudicados pelo embuste liberal que tanto exaltam. Eles fiam-se que o povo seria tão cego e estúpido e suicida a ponto de coser as fibras da corda na qual o enforcarão. A multidão se mostra mais assertiva, as ofensas se multiplicam, burguesinha, cala a boca, vagabunda, mentirosa, vai pro inferno, vadia, arruaceira, filha da puta, filha da puta, filha da puta. Alguém fode essa mulher, pelo amor de Deus, implora um militante, as pálpebras escancaradas, deixando entrever um pouco mais da esclerótica raiada de artérias. Como é que essas filhas da puta vêm aqui só pra interromper o deputado, o presidente, como é que elas se acha nesse direito, questiona a dona de casa, corrigindo em tempo o equívoco em relação aos cargos eletivos. A mulher parece acuada, esfuziam-na de todos os pontos cardiais, ela lança um último apelo, Presidente, presidente, você tem que me ajudar, pelo amor de Deus, cê tem que me ajudar, eu já não aguento mais. O presidente não olha para ela, seu olhar se fixa no éter. Agora é o momento de mostrar aos profetas do golpe que nós rejeitamos seus raciocínios simplistas; que a crise só será superada com a união do povo brasileiro, e não com sabotagens rasteiras e abjetas que têm como único efeito semear o dissenso no seio da pátria, conspirando contra a sua grandeza. Agora é o momento de extirpar do nosso meio aqueles que dedicam suas energias ao atraso do progresso nacional, adiando a chegada de um futuro vindouro de desenvolvimento e oportunidade para todos. Agora é o momento de manifestarmos o nosso repúdio aos aproveitadores que se valem da marola de breve recessão – que, aliás, não é idiossincrática ao Brasil, mas assola o mundo inteiro - para dar vazão a suas delírios liberais. E começaremos a fazê-lo expressando a mais decidida oposição a este jornalista embusteira e inescrupulosa, que meteu-se em uma desavergonhada invasão ao meu comício, cortando a minha fala e incitando a população contra mim, cega à notável ausência de condições que possibilitaria qualquer motim, qualquer manifestação de indisciplina por parte do povo, contemplado em todo no projeto desenvolvimentista engendrado pelo governo federal. O que ela objetivou fazer – e não tenho única que não será a única a tentá-lo – foi manipular a população através de um sentimentalismo gratuito em prol de seus escusos interesses privados. E no que ela se difere dos milhares de jornalistas cujas carreiras baseiam-se tão somente em solapar a coesão nacional? Assoma-se, portanto, a chance de passar a todos estes uma mensagem de rejeição, de rejeição àqueles que encaram o poder como uma brincadeira para crianças, cultivando um caos e uma instabilidade interna que mata todos os dias os filhos e filhas do cidadão brasileiro. Palmas. Assobios. Vargas, Vargas, Vargas. E comecemos esta campanha com esta mulher irresponsável, insana, que abusou do espaço que lhe foi dado para propagar as mesmas parvoíces, os mesmos disparates, as mesmas patuscadas que se veem emporcalhando os jornais brasileiros, e isto, em uma evidência inconfundível do mais pavoroso niilismo, do mais ousado desacato à autoridade, na minha frente, em meu próprio comício. Conclamo a todos os ouvintes, meus colegas nessa luta, que se unam urgentemente para silenciar esta tresloucada, antes que ela se ponha a balbuciar mais mentiras, para que não percamos mais uma fração de segundo com suas difamações e calúnias. Isso aí, soca a cara dela, exclama a dona de casa, com os braços para o céu, Tira ela daí, suplica o militante, ranca esse microfone da mão dessa corna; o velho interpõe-se, Eu não tinha falado, eu tinha falado, por que é que alguém não esgana essa puta, essa desocupada. Vendida, vadia, condena um outro; o círculo começa a se fechar em volta dela. A mulher afunda as garras no microfone, quase enfia-o na boca, Presidente, presidente, pelo amor de Deus, cê tem que me ajudar. Sua voz é abafada pelos apelos do presidente, que proclama o fim da era de tolerância servil com a corja que quer tirar do povo o poder sobre o seu próprio destino, uma vez que fosse eliminada esta corja de jornalistas covardes e amantes da derrota, o país entraria nos seus anos dourados, seria liberado um potencial virtualmente inesgotável de prosperidade. Exclamações de apoio são entoadas em um como uníssono. O velho agarra o microfone com suas mãos azuladas de veias, Larga, larga, me dá isso aqui essa merda. A mulher luta, tenta espremê-lo entre as palmas. A dona de casa rosna, Solta, porra, pespegando-lhe um golpe com o punho fechado na traqueia. A mulher deixa o aparelho cair, leva as mãos à garganta, tosse, agitando o fio de saliva, tingido de carmosim aqui e ali, que pende do seu lábio inferior. Ela arqueja, curvada, enquanto um homem a empurra, Traidora, canalha, filha da puta. O seu rosto está úmido, refletindo uma parte dos raios ensanguentados do fim da tarde. A voz lhe sai estrangulada pela falta de oxigênio, Presidente, presidente. Alguém lhe manda calar a boca, outros ordenam que ela dê o fora dali, sucedem-se os empurrões novamente. Pouco a pouco, a serpente humana vai regurgitando a mulher. Nos meandros, alguns desferem pontapés, outros repetem a cantilena de insultos, adicionando outros de sua preferência. Não tarda para que a mulher, os cabelos desgrenhados e a camisa manchada de suor nas axilas, seja banida para uma rua adjacente, impedida de adentrar o comício pelos olhares hostis que se destacam no conglomerado de apoiadores do presidente, prontos para atacá-la novamente se fosse necessário. A mulher espreme os olhos, tenta ver o presidente. Ele ainda está no palanque, discorrendo sobre algo que ela não pode ouvir. O tom combativo se faz evidente em seus gestos, que despertam aclamações gerais. O presidente sacode o dedo indicador em riste, seus ministros o aplaudem, um deles se inclina para o general obeso, murmurando algo que ele responde afetando um suspiro de alívio. Atrás deles, um cartaz, de onde se projeta a imagem prazenteira do presidente a cumprimentar dois operários igualmente sorridentes, encabeçada pelo letreiro, BOTA O RETRATO DO VELHO OUTRA VEZ.