Em memória
Após trinta anos de casados, e um filho muito bem criado, resolveram se separar. Não que não se amavam, mas, naquele momento, ambos ansiavam por uma nova vida. Queriam viver novas aventuras. Ter novas experiências. Com o filho ali no altar, terminava um ciclo de suas vidas. O dever fora devidamente cumprido. Agora, estavam livres, para viver outros ciclos, cada um à sua maneira.
Fizeram tudo para que tivessem uma noite maravilhosa. Afinal, além do casamento do filho único, esta seria a uma noite de casados. Portanto tudo deveria sair maravilhosamente bem. O que, de fato, aconteceu. Nesta noite viveram intensamente todas as emoções possíveis. Nesta noite sorriram. Choraram. Nesta noite eles se amaram pela última vez.
De manhã, acordaram logo cedo e começaram a dividir seus objetos. Dividir suas histórias. Dividiram os discos, os livros, os cds. Como tinham gostos totalmente diferentes, não encontravam dificuldades em dividi-los. Com uma casa devidamente montada, os móveis, sem contar com a poltrona do papai, claro, ficaram com ela.
Tudo ia muito bem até que...
- Tudo certo, né? – disse ele – Agora só falta eu pegar o Tonico.
Tonico era o louro do casal.
- O quê? – pergunta ela – Pegar o Tonico?
- É... Por quê? Algum problema?
- Claro! O Tonico é meu! Daqui ele não sai.
- Seu? O Tonico é seu? Fui eu quem ganhou ele de presente. Eu.
- Mas fui eu, quem sempre cuidou dele. Quem o alimentou. Quem o medicou, quando foi preciso. Desculpe, mas o Tonico fica!
- Fica uma ova, Tonico vai.
- Fica!
- Vai!
De repente o que parecia tranqüilo transformou-se em uma discussão sem fim.
- Fica!
- Vai!
- Quer saber – disse ele – O Tonico é quem vai decidir com quem ele quer ficar.
- Então ta bom – respondeu ela – Você vai ver só.
Ele foi até a área de serviço, pegou o papagaio e colocou-o no centro da sala de estar. Ele se postou de um lado e ela do outro lado da sala, e puseram-se a chamar o bichinho pelo nome.
Diante disso, o coitado do bichinho, confuso, ora ia para o lado dele, chamando por papai, ora para o lado dela chamando por mamãe. Então, depois de horas de tentativa, desistiram. Desistiram não só da estupidez a que submeteram o coitado do animalzinho, mas, também desistiram da separação. Desistiram por amor, por amor a Tonico. As novas experiências, as aventuras, a nova vida teria que esperar um pouco mais. Afinal, Tonico não conseguiria viver sem qualquer um dos dois. Definitivamente não.
Dois anos se passaram até que Tonico veio a falecer. Uma grande comoção tomou conta de ambos. Ficaram dias em silêncio. Ficaram dias sem ao menos trocar uma só palavra. Depois do luto, se reuniram. Agora, estavam livres. Nada mais atrapalhariam seus planos.
Então, comovidos, emocionados, tomaram a decisão: Não se separariam mais, Tonico não gostaria nada, nada, de vê-los separados. Em memória do Tonico, resolveram ficar juntos para sempre.
Em memória do Tonico, só por isso.
Marc Souz
Escritor