O SUPENSÓRIO
Ao tocar a sineta para a mudança de professor, lá ele vinha com a sua inseparável bolsa aonde conduzia o material didático, de altura mediana, e o que chamava mais a atenção era a sua barriga proeminente. Professor de francês há muitos anos, ao chegar à porta da classe o seu jargão já era esperado por todos nós alunos.
- Bonjour écoliers!
Os alunos da 4ª série ginasial (naquela época remota), em coro e gritando:
- Bonjour, pêtre Manoel
Era o padre Manoel, beirando os 70 anos de idade. Tomava logo o seu ar de sisudez, e como querendo se vingar dos gritos e do desrespeito, arguia o aluno cujo nome lhe viesse à cabeça. E valia nota.
- Monsieur Antoine Louis. Répondre moi. Parlez vous français?
- Oui.
A classe caiu na risada.
- Seulement ceci?
- Je parle très bien.
- Beaucoup bien. Asseoir.
Após este prefácio, os professores começavam a aula com uma oração. Todos em pé, respeitosamente, repetiam com o padre a Ave-Maria na língua francesa.
- Je vous salue, Marie, pleine de grâces, le Seigneur est avec vous, vous êtes bénie entre toutes les femmes et Jesus, le fruit de vos entrailles, est béni. Saint Marie, Mère de Dieu, priez pour nous, pauvres pécheurs, maintenat et à l'heure de notre mort. Ainsi soit-il.
Retirando o material da velha pasta, e após coloca-lo sobre a mesa, começou a chamada. Quando terminou e pretendia iniciar a aula, logo a turma toda protestou.
- Não padre. Hoje não vai haver sua aula. Está esquecido do seu aniversário?
Um risinho tímido mostrou-se no canto da boca. Parecia contente pela lembrança.
Os sacerdotes, antigamente, usavam batina. Vestiam-se normalmente e punham a batina de cor bege ou preta por cima da roupa. Como padre Manoel era portador de proeminência ventral avantajada, ele adquiriu um hábito interessante: para não sujar a batina, utilizava os dois antebraços para levantar um pouco a calça quando ela teimava em escorregar. E havíamos prestado muita atenção nesta mania, há mais de dois anos.
Tomou giz de três cores e começou a escrever no quadro. À medida que escrevia, pronunciava.
- J’ai(jé),Tu as(thia), Il/Elle a(il/elle a), Nous avons(nusavon), Vous avez(vusavê), Ils/Elles ont(ils/elles ont).
Durante esses poucos segundos ele levantou a calça duas vezes.
- Pronto padre! – gritou Dante. Agora o senhor vai sentar-se, pois nós preparamos uma simples homenagem para nosso querido professor. Com a palavra nosso colega e orador da turma.
- É uma honra para mim, estar representando neste momento os cinquenta e dois colegas da quarta série ginasial. Homenagear este professor tão querido e amado por nós constitui-se num dever de gratidão e de amizade. Tê-lo como nosso professor de francês (parlez vous français?), é um prêmio para nós. Inteligência privilegiada e argúcia mental incontestável, a sua cultura francesa nos enobrece e nos impulsiona a segui-lo passo a passo nesse caminho que o levou aos píncaros do conhecimento da Língua, e com certeza nos levará também. Porém, antes de dar continuidade, chamo Elizeu que recitará uma poesia, e logo após Maurício que contará uma piada (piada decente, é claro).
Terminada a homenagem dos dois colegas, aplausos. O padre também compartilhou das palmas.
- Continuando – prossegue o orador – é chegado o ápice desta homenagem. Convido todos a cantar efusivamente os parabéns, e ao término, a comissão responsável pela entrega do presente, passa-lo-á às mãos do homenageado. 1...2...3...
“Joyeux anniversaire
Joyeux anniversaire
Joyeux anniversaire (nome da pessoa)
Joyeux anniversaire.”
A emoção era grande. Palmas, assobios. O homenageado estonteante de alegria. Nunca pensara numa homenagem tão simples, mas tão bonita, sincera e verdadeira. Com o presente nas mãos, tomou a palavra:
- Queridos alunos! Estou deveras emocionado. Faltam-me palavras para agradecer à altura esta homenagem que bem sei, não mereço. A todos o meu muito obrigado.
- Abre! Abre! Abre!
Calmamente padre Manoel foi retirando o laço... Depois – devagarinho – o papel. Os nossos corações faltavam sair pela boca. A expectativa e o temor se misturavam. Retira a tampa da caixa. Dentro o presente embrulhado. Desfez o embrulho – ainda com um sorriso. Mudou drasticamente de fisionomia. Ficou pálido. Começou a suar e a tremer.
- O que foi padre?
- Uuuummm suspensório?!
Foi socorrido imediatamente pelo padre Conselheiro, levado ao hospital onde permaneceu pelo resto do dia, enquanto nós recebemos um castigo – a meu ver – não merecido. Somente poderíamos retornar às aulas normalmente, após copiar o Segundo Canto dos Lusíadas, de Luís Vaz de Camões. Cento e dez estrofes de oito versos cada. E o tempo, ó!
03/03/2012
ALMacêdo