EU, ESCRITA POR EXTENSO...
Foi-se o tempo em que a palavra valia os fios dos bigodes dum cidadão quando a palavra alguma da "antiguidade" se fazia mister reconhecê-la como verdadeira através de testemunho cartorário.
"Eu te dou a minha palavra!", e ponto final.
Falou estava falado, em suma, "dar a palavra" significava que nada naquele mundo teria maior garantia do que a palavra propriamente dita.
Eu tinha um tio que a palavra dele valia ouro...e ai de quem ousasse desautorizar o valor da sua palavra proferida.
Como o mundo mudou...
Dia desses precisei reconhecer minha firma, entenda-se, minha "assinatura" dentro dum cartório de notas.
Aliás, diga-se bem bem de passagem, se a minha palavra "per se " já não tem nenhum valor, eu sinceramente não imaginava como minha assinatura é valiosa...
Coisas da modernidade capitalista.
Então estava eu numa fila básica, a tentar reconhecer a minha palavra assinada por autenticidade e não por semelhança.
Pois é, hoje não basta que a sua palavra seja parecida com você ela tem que ter, isso sim, a sua cara bem atual.
Isto significa dizer que reconhecer assinatura por autenticidade é um ato presencial: têm que estar presente você, sua assinatura, seu bolso e por último a sua palavra não proferida. Esta última é a que menos importa no presente momento.
Certo?
Mas o que me surpreendeu foi o que ocorreu com a pessoa a minha frente, um garoto com não mais de vinte e cinco anos, pobrezinho, que sequer conheceu a força da palavra de antigamente.
Esperou ser chamado e mostrou o documento.
A pessoa do "cara crachá" ficou em dúvida e lhe perguntou quantos anos teria ele naquela fotografia da cédula de identidade.
"Mas sou eu sim, sou eu há pouco tempo!"
E claro que era, não havia a menor dúvida.
"Sinto muito, senhor, mas eu não lhe reconheço presencialmente aqui, você mudou muito, aliás, você era bem mais novo antes...".
Mas se sou eu...e se eu estou aqui..."
"Sim, mas tem que me provar, então traga outro documento ou tire uma nova foto.
E o pobre do moço que ainda nem teve tempo de envelhecer "de verdade" já saiu de lá com a sua palavra irreconhecivelmente bem mais velha...
Que mundo, que mundo!
A próxima da fila seria eu, e claro, eu então estaria perdida, olhei para a minha sorridente foto da cédula de identidade e esperei pelo mico do tempo e tivemos vontade de chorar, eu e a minha palavra.
Alguém poderia me perguntar..."é você mesma, e estava rindo do quê?" então, tentei um ar mais sério num espelho próximo dali para desencorajar qualquer agressão à minha antiga palavra. Caramba! Bem ali no fundo da foto, eu sabia, aquela também já não era mais eu.
Então, imediatamente me lembrei dum DELICADO E EDUCADO mail dum leitor do RECANTO que outro dia me escreveu assim: "Ei Mavi, vê se troca a sua foto do perfil porque ali você deveria ter vinte anos, poxa!".
Como não tinha não, a foto tem só uns três anos, então me desesperei com a possibilidade de também acharem a minha palavra documental reconhecidamente menos autêntica que a presencial, algo falsamente mais jovial no retrato .
Olharam para a foto, torceram o nariz, olharam para mim METICULOSAMENTE, como a afrontar o valor da minha palavra meio antiga e então, resignada, aguardei pela sentença da minha originalidade.
Ufa, não acreditava, enfim a cartorária me bateu um carimbaço porque ingenuamente acreditou que ali minha palavra era eu, propriamente escrita por extenso.
E mesmo que eu lhe jurasse que ali minha palavra sequer existia, mesmo assim eu ganhei um selo de autenticidade, obviamente depois que paguei dez reais pelo meu reconhecimento genuinamente presencial.
Bons e remotos tempos aqueles... em que a palavra tinha valor, não o valor do valioso bolso capitalista mas, sobretudo, o valor humano, aquele que dá o verdadeiro sentido a todas as palavras...