Lili, aos 6 anos

Criança é mesmo um furo nas coisas mais ensaiadas.

Pois que, debaixo do balcão, veio uma voz:

- pai, o que é preservativo?

O atendente logo pensou: “trouxe criança na farmácia? Ah... O paraíso! Se vire agora, quero ver!”

- é camisinha, minha filha, camisinha! – Respondeu o pai, sem dar tanta importância assim.

- posso levar uma pra mim?

- por que você vai querer uma dessas?

- pra usar, né pai?

- usar?

Até o balconista fez cara de aflição.

- eu sou uma pessoa pequenina, pai, pequenininha, nininha, eu uso camisinha...!

- mas essa camisinha não, filhinha.

- por que não, pai?

- porque não.

De aflito, o moço da farmácia rogou-se no direito de negligenciar então a presença dos outros clientes. Toda a atenção era para a menina. Como assim, “porque não” e ponto? Que tipo de pai é esse, que desconhece o básico do funcionamento na relação com os filhos?

- pai...

- fala!

- eu sou homem ou mulher?

- você é menina!

- ou eu sou homem ou eu sou mulher, pai; na escolinha a gente aprende que a sociedade é feita de gente, gente homem e gente mulher...

- você ainda não é nem homem nem mulher, você é menina!

- então um dia vou ser homem que tem um saco com bolinhas que nem você ou como a mamãe, que tem um risc...

- menina! Xiu! Que feio você falar assim, uma garota tão linda e com uma boca tão poluída? Toma esse pirulito aqui, é justo para alguém de sua idade que apenas chupe pirulitos bem docinhos, para adocicar a vida – pintou, toda oferecida à tutora moral, uma senhora de pérolas enormes no pescoço. A menina agradecida tomou o pirulito de sua mão e continuou:

- mas eu sou homem ou mulher? – franzia o sobrolho e prendia um biquinho com charmes típicos de criança, agora se ponto a gritar – homem ou mulheeeer?

- você é mulher, pronto, mulher! – sentenciou o pai, ao desviar de sua inequívoca atenção: decifrar o que nem os médicos entendem naquele papelzinho em forma de receita.

- então, eu exijo o meu anticoncepcional!

- QUÊ?

- é pai, sou mulher, não sou? Então, olha lá!

A menina aponta o cartaz publicitário que indica lá da parede: “mulher, exija a sua liberdade, exija o seu anticoncepcional (do laboratório...)”.

- você ainda não é mulher... Você é uma menina... Um dia se tornará uma mulher linda! Até lá, esqueça esse negócio de anticoncepcional, minha filha.

- mas pra que serve o anticoncepcional, pai?

- nossa, tão novinha e já sabe ler tão bem? Quantos anos você tem, bonita garotinha? – outra vez a senhora do pirulito.

- seis.

- seis anos e já lê bem assim, parabéns!

- é meu aniversário, pai? – a menina mostrou timidez e agarrou-se à perna do pai.

- ela te dá os parabéns porque você é muito esperta, minha filha; agradeça.

- obrigada!

- imagina! Mas olha... Não dê muita bola para todas as palavras que você encontra não... Algumas delas são chatas... E tão chatas que servem apenas para adultos... Vou te dar outro pirulito, você merece!

- a mamãe tem anticoncepcional, pai? – a menina definitivamente não se simpatizou com a senhora.

- não, minha filha, não tem... Se ela tivesse, você nem estaria aqui, hehe.

- então a mamãe não é livre!

- sim, meu anjo, a sua mãe é livre...

- sem anticoncepcional?

- sim!

- e porque “se ela tivesse” eu nem estaria aqui, pai?

- porque anticoncepcional, minha filha, serve para que não nasçam os filhos que a gente nem deseja.

Dessa vez, até o motoqueiro que aparecia em frente à farmácia para receber as entregas prendeu a respiração. O ar em volta se imobilizou, à espera da resposta do pai da garotinha.

- uia... Anticoncepcional é padre, pai?

- padre?

- quando você se casou com a mamãe, não foi o padre que colocou a sementinha na barriga dela para eu nascer?

- é... Foi sim, minha filha...

- então, uma mulher livre é aquela que exige ficar perto de um padre?

- não... Anticoncepcional é um remédio que a mulher – adulta – usa para não engravidar, minha filha...!

- não entendi, pai.

- é uma pílula, a mulher toma quase todo dia, respeitando um calendário, uma tabela, e aí, ela não tem filho.

- mas não é mais fácil ela deixar de visitar o padre que coloca a sementinha, ao invés de tomar remédio, pai?

- o padre ela só visita no dia do casamento, e é uma única vez na vida, minha filhinha perguntadora! Como pergunta essa criança!

- pai...?

- diga, tesouro.

- eu não acredito mais em você!

- mas o que eu fiz?

- caiu em contradição...

- como?

O público da farmácia – e aquilo agora parecia um auditório de TV – quase aplaudia o entusiasmo da garotinha tão garotinha e tão esperta ao mesmo tempo.

- se você disse que a mulher só visita o padre uma única vez...

- sim, minha filha, só pode casar-se perante o padre uma única vez!

- então, como a titia tem três filhos? Então, como nascem os irmãos?

- é que a sementinha, minha filha – o pai estava embaraçado – sabe, a sementinha... Ela tem o poder de germinar mais de uma vez, é isso!

- a semente é transgênica, por um acaso?

- não, minha filha, é uma semente de deus...

- hum... Sei... Semente de deus... Só pra me enganar, né? Semente que brota mais de uma vez? Na escola não se aprende isso não...

- não fique desconfiada, minha filha... É assim mesmo que funciona... O padre coloca a sementinha quando a mamãe se casa com o papai... E essa semente é a semente de deus... Pode germinar várias vezes!

- então eu terei irmãozinho um dia?

- ah... Vamos ver... Se o papai se reunir com a mamãe... E a gente decidir que sim... A sementinha pode brotar outra vez.

- mas se é o padre quem coloca a semente, a semente é de deus, e fica plantada na mamãe, qual é a sua utilidade, pai?

Aplausos. Até uns gritinhos mais exaltados!

- o papai tem uma função importante, minha filha...

- tem? Qual?

- o papai tem que regar a sementinha para ela poder germinar.

- ou seja, a sua obrigação é fazer o que qualquer um pode fazer...

- qualquer um?

- é, qualquer um.

- não é não, minha filha; o papai tem a nobre função de regar a sementinha, do jeito que só o papai pode...

- mas a Maria, além de limpar nossa casa, dar minha comida, ela também rega o nosso jardim, pai...

- é outro tipo de regar, meu anjo!

- vai ver por isso que você nunca aceitou aquele jardineiro homem que cuida das plantas do nosso vizinho, né pai? E você sempre disse que ele faz o trabalho que qualquer um sabe fazer, por isso ele vivia de roupa rasgada e sapato velho.

- não... É de outro tipo de jardim que falamos, criança.

- ai, pai, você complica tudo!

- ser adulto é mesmo complicado, minha filha. Nem os nomes dos remédios que precisamos eu consigo traduzir aqui... Nem eu, nem os farmacêuticos...

- pai, você complica tudo!

- por quê?

- porque o simples você transforma em teimosia, pai... Por que eu não posso, por exemplo, levar uma camisinha para mim?

- oras, pois não tem cabimento você sair daqui com camisinhas.

- por que não? E se eu gostar e passar a usar...

- para com essas coisas, menina!

- usar a camisinha nas minhas bonecas, pai... Qual o problema? Eu não entendo!

- é que essas camisinhas não são para bonecas, são para não fazer filhos, e quem as usa, dessa vez não é a mulher, mas sim, o homem!

O pai gritou. Estava nítida a sua impaciência.

- no regador, pai?

- não, minha filha – gritando – não!E não tem como você saber ainda como se usa aquilo...!

- realmente você complica as coisas...

- eu?

- sim, terei que aprender na rua mesmo... Com as amizades...

- o que?

- as coisas da vida, pai... Pois, já pensou no dia que você quiser conversar comigo assuntos tão importantes como, por exemplo, o sexo? Vou aprender desse jeito complicado? Ah, to frita!

O pai amassou a receita, colocou no bolso, pegou a filha pelo braço. Caminharam até o carro, estacionado lá fora.

- Malditos médicos! – era o que dele se ouvia nesse tempo.