UMA MULHER HONESTA







Olhou para o advogado diante dela e imaginou-se em uma cena teatral:


- Quero entrar com o processo de separação e acho que será litigioso. Estou casada há doze anos. Não tivemos filhos.


O homem a interrompeu:


- Por que acha que seria litigioso?


Ela abaixou o olhar e apertava as alças da bolsa em seu colo. Como fazer aquilo? Não havia outra forma a não ser simplesmente dizer a verdade, somente a verdade e nada mais do que a sua verdade:


- Desejo me separar porque não acredito em casamentos felizes. Há algo errado em minha união. Meu marido me cobre de mimos, atenção, viagens, jóias, presentes, carros, casa na praia, na serra, enfim, tudo que desejo e até o que nunca imaginei que desejaria, está ao meu alcance. Como num passe de mágica.


Rafael precisou de toda a experiência ao longo de vinte e cinco anos de carreira para permanecer natural com sua nova cliente. Por um lado, o surrealismo, por outro, uma estranha e incômoda sensação de que talvez fosse possível, o fez perguntar:


- O que esperava de seu marido?


- Não fui clara?


- Você deseja se separar por que está infeliz com a sua felicidade?


Laura olhou o advogado com uma expressão de espanto e disse:


- De forma alguma! Estou infeliz porque ele me engana com essa tal felicidade! Não acredito em pessoas felizes! Ninguém que eu conheça é feliz! E eu conheço tanta gente!


O advogado imaginou-se em alguma brincadeira, ou pior, vítima da vingança de ex-maridos furiosos com o resultado obtido para suas clientes. Por um instante, pensou no desejo de sua mãe: "Faça neurocirurgia, meu filho!". Ela achava chique dizer que tinha um filho neurocirurgião. Se estivesse ali, provavelmente diria: - "Eu te avisei!".


O silêncio do advogado a fez continuar:


- Todas as minhas amigas têm problemas no casamento. Seus maridos têm outras mulheres. Bem, nem todas! Imagine que duas delas descobriram que eles tinham namorados. Deve ser mais difícil ainda! Uma espécie de concorrência desleal, sabe? Não se pode lutar com as mesmas armas!


Rafael queria rir. Aquela mulher parecia no limite entre a mais corajosa e perversa loucura, ou seria lucidez pelo avesso? Tentou alinhar o pensamento e perguntou:


- Laura, o que você pretende alegar para separar-se dele?


- Ora, Rafael! Este é o seu trabalho! Advogados existem para isso!

Pela primeira vez em sua vida concluiu que a mãe tinha razão. O mundo havia perdido a chance de ter um neurocirurgião, mas era tarde. Bebeu um pouco de água antes de responder:


- Veja, precisamos alegar um motivo. Quero que você fale a respeito de como se sente dentro desse casamento.


 Laura tentou explicar e seu tom de voz trazia a vibração dos que buscam corrigir uma injustiça:


- Sinto que minha vida está empobrecida. Minhas melhores amigas tiveram muito mais experiências do que eu. Meu marido foi o primeiro e único namorado que tive. Foram dois anos de namoro, outro de noivado e, como disse, estamos casados há doze anos. Enquanto elas estão no terceiro casamento! Uma já está no quinto! Imagine! Fico envergonhada quando me perguntam quantos ex-maridos eu tenho!


O advogado quis apelar para as aulas de filosofia, mas estava contaminado pela presença surreal da cliente ao falar:


- Felicidade é apenas um conceito filosófico!


A mulher parecia brava:


- Se eu fosse uma mulher desonesta, teria, pelo menos, um amante! Um, não! Nem em hipótese eu ouso! Que tristeza! Digamos três ou quatro ao longo desse casamento! Mas eu sou honesta! Você entendeu? Eu sou honesta!


Rafael queria falar alguma coisa que pudesse trazer algum sentido, quando a mulher emendou:


- Por ser honesta estou aqui, diante de um advogado, atrás da coisa certa! A única coisa que me resta!


O homem falou quase amedrontado:


- E qual seria?


Laura endireitou-se na poltrona e disse:


- Você precisa me ajudar a ter, pelo menos, um ex-marido!
 



(*) Foto: Google

 
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Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 22/07/2009
Reeditado em 24/06/2011
Código do texto: T1712594
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