"FELIZ ANO NOVO" (*)
"Contar o tempo é uma grande ilusão, como
sabemos, mas – e se não contássemos?
E lá fomos nós, outra vez.
Assistimos à queima dos fogos, tomamos champanhe, trocamos beijos e abraços, dissemos feliz ano novo.
Os mais entusiasmados aderiram ao coro da contagem regressiva: dez, nove, oito, sete, seis...
E ao toque da meia-noite havia gente com lágrimas nos olhos.
Era a emoção da virada, da ultrapassagem, da volta ao marco zero, do recomeço, de se encontrar no exato ponto em que começa o futuro.
Claro que era tudo mentira...
e que depois de uma noite maldormida por causa da vigília até tarde, das bebidas e da comilança, com os músculos doendo e gosto ruim na boca, se perceberia que estava tudo igual, cada coisa em seu devido lugar, inclusive as aflições que azucrinam a cabeça, as doenças que castigam o corpo, as obrigações, os trabalhos, os motivos de chateação e os de alegria.
Mas somos incorrigíveis, que fazer?
Assim como já fizemos infinitas vezes no passado, na virada para o próximo ano repetiremos a dose.
Não é pelo detalhe de saber que não funciona, que não há recomeço só porque se passou de um ano para o outro, se é que há recomeço, seja quando for, que vamos mudar um ritual para o qual nos programaram desde sempre.
Contar o tempo é uma grande ilusão, como todos sabemos, mas – e se não contássemos?
Estaríamos como num deserto, todo plano, só areia, e sem estrelas no céu. Não é que, numa situação dessas, não se acha o caminho; é que não há caminho.
Contar o tempo é o estratagema mais ardiloso já concebido pelos homens.
A natureza ajudou, ao fazer os dias se suceder às noites, e o sol e a lua cumprir trajetos previsíveis.
Com base nesses escassos dados, os homens fizeram do tempo um salame que se mede, depois se demarca, depois se retalha em porções que o tornam digerível. Em outras palavras, perpetraram a grande proeza de transformar o tempo em espaço.
O estratagema equivale a tornar visível o invisível, a dar forma ao que é informe, a conferir descontinuidade ao que é contínuo.
Ou seja: é uma mágica, pela qual se transforma a coisa em seu contrário. Equivale a, do vento, produzir-se uma construção de complexa arquitetura.
Estamos diante da mãe de todas as façanhas.
Tomou-se de algo que não se pode ver nem pegar e transformou-se em objeto tão concreto e assentado no espaço como um armário. Inventaram-se gavetas para esse armário – 2005, 2006, 2007, 2008... O interior de cada gaveta foi, por sua vez, subdividido em escaninhos chamados janeiro, fevereiro, março...
Pronto. Estavam criados espaços nos quais ancorar a memória e fixar a agenda do futuro. Sem tais âncoras, nem a memória teria as condições ideais para se desenvolver nem o futuro para ser planejado.
Sem uma memória confiável, nem uma plataforma para a agenda do futuro, a inteligência encontraria insuperáveis dificuldades para prosperar.
Se a imagem do armário soa grosseira, fique-se com outra, mais delicada, ainda que óbvia – a do calendário. O tempo, esse ente assustadoramente impalpável e elusivo, nele aparece singelamente traduzido em papel, como se tivesse sido decifrado e dominado. Dominado é bem a palavra.
É a palavra que se usa contra os inimigos, e o tempo é um inimigo.
Sua especialidade é provocar desgaste e envelhecimento.
No limite, mata.
E é um inimigo ladino, nesse seu jeito de não se deixar ver nem apalpar, sorrateiro, em sua inconsistência, como um fantasma.
No calendário – vingança – ei-lo capturado e trancafiado como passarinho na gaiola. Como gênio na lâmpada.
Ou, para recorrer a imagem ainda mais delicada, e ainda mais óbvia, ei-lo, quando submetido à contagem que lhe impomos, aprisionado no âmago dessa maquininha esperta e fiel a que chamamos relógio.
Domar o inimigo é o mais capcioso dos efeitos da contagem do tempo. Mantê-lo domesticado dentro do calendário ou do relógio significa que, agora, mandamos nós.
As vozes que na noite do dia 31 entoavam a contagem regressiva comandavam o andamento do tempo como um jóquei comanda o cavalo.
Ao chegar a meia-noite, ficou estabelecido que acabava de falecer o pedaço do salame de número 2007, e passava a vigorar o pedaço de número 2008. Foi uma perfeita e sincronizada operação no corpo do inimigo subjugado.
Todos conhecem o fim desta história.
Ele sempre vence.
Nossa mágica de capturá-lo e contá-lo, como todas as mágicas, não passa de ilusão.
É ele quem, impassível como nunca deixou de ser, mais dia menos dia vai abater, uma a uma, todas as pessoas que, em coro, imaginaram comandá-lo na noite do dia 31.
Não há como escapar de suas garras.
Mas é melhor não pensar nisso.
A ilusão de que de alguma forma dominamos o salame, a ponto de tornar distintas suas diferentes partes, é que nos mantém vivos.
E que produz essa outra ilusão, a de que a cada 365 dias se ganha a oportunidade de retornar ao marco zero.
Incorrigíveis que somos, daqui a um ano quem viver nos verá de novo no ritual de entoar em coro a contagem regressiva,
tomar champanhe,
trocar beijos e abraços,
dizer feliz ano novo e derramar lágrimas ao saudar,
com emoção e esperança,
a chegada de 2009.
(*) Ensaio: Roberto Pompeu de Toledo, publicado na revista Veja, Edição n. 2042, de 09.01.2008.