O Anel do Ênio

“.... Já choramos muito, muitos se perderam no caminho...

(Beto Guedes, Sol de Primavera)

Eninho era meu irmão caçula. Ênio Wladimir Santiago Pereira, mais precisamente. Como era tradição lá em casa, a partir do Gerson, eu escolhi o nome dele. Tínhamos 18 anos de diferença. Eu o carreguei no colo, tratava-o quase igual a um filho, nem tanto como irmão.

Quando fiquei sabendo de seu falecimento, não me surpreendi: das duas últimas vezes que o vi seu estado era desolador, cada vez pior. Da última, nem sei se me reconheceu. De vez em quando, choro ao pensar que nunca mais vou vê-lo, ouvir me chamar de “Rochinha”, referência a um personagem de humor da televisão. Mas aí racionalizo: vê-lo caminhando devagar para a morte era bom? Sofrendo e fazendo os outros sofrerem?

Aí me consolo, prefiro lembrar os bons tempos e guardar dele a imagem do rapaz bonito, forte, proativo, trabalhador e, principalmente, alegre, o caçulinha, xodó de minha mãe.

Assim como pensava do meu irmão Gerson, falecido em março de 1985, em acidente de carro, Eninho estava entre esses que se perderam no caminho. O “Sol de Primavera” da música de Beto Guedes deve estar brilhando para ele num mundo diferente do nosso. Bom, agora, não vou mexer mais no lado triste da história, já não faz sentido, ele já se foi. Vou é lembrar os bons tempos que passamos juntos. E foram muitos. Nos anos 80, 90, rimos muito nas festas de família ou nas farras entre amigos e parentes. Destaco três momentos de alegria e bom humor:

O anel do Ênio

O Eninho tinha um senso de humor extraordinário e cooperava para colocar mais graça nas histórias, mesmo quando eram contra ele. Exemplo foi quando fazia sucesso a música “O Anel do Ênio”, de Helder Batista, gravado também por Cremilda e porTeodoro & Sampaio, essa gravação na versão “A Roela do Ênio”. Ele mesmo encorajava as piadas, perguntando quem estava com o seu anel.

O amigo e vizinho Dalton Rocha Pinto e o ex-cunhado Aguimar, vulgo “Lagoa Azul”, eram dois que participavam dessas brincadeiras na época. Como ele era muito popular, sempre aparecia algum companheiro para criar uma história, meio verdade, meio mentira. E ele, em benefício do bom humor, dava corda. Mas quem ficou mesmo com o anel do Ênio?

Escondendo leite

Outra história do Eninho tem a participação do meu querido amigo de infância, o popular Wellington K-Brito, conhecido também como “É outro departamento”. Um começo de noite de domingo, que caminhava para terminar zero a zero, estávamos Eninho, Enver da Rocha Pinto, irmão do Dalton, e eu no Bar do Zé Maria, em frente à antiga Santanense, tomando cerveja numa boa. Clima de alegria pura. De repente, estaciona um caminhão com a carroceria cheia de gente. Lá de cima, alguém grita:

- Vamos pro Boca da Noite, comemorar o aniversário do Paulinho Soffiati. Tudo 0800.

Ninguém se fez de rogado. Subimos na carroceria e fomos parar no “Boca da Noite”, pub que fez sucesso nos anos 80 em Pitangui. O K-Brito animava a festa, tocando e cantando de It’s now or never a Besame Mucho. Já alta madrugada, segunda-feira já ameaçando todo mundo, K-Brito pediu arrego e dormiu numa das mesas. O silêncio durou pouco. De repente, quem eu vejo animando a festa, já no palco? Ele mesmo, o Eninho, de violão em punho, talvez a primeira vez na vida e num palco. Pois enrolou, enrolou todo mundo com a única harmonia de música que conhecia: “Pra não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré.

Com a mesma harmonia, atendeu pedidos de todo tipo e, acredito, satisfez a todos os presentes, já turbinados.

Dias depois, o K-Brito me encontra e diz:

- Não sabia que seu irmão tocava tão bem assim! Ele entrou no meu lugar e mandou ver. Escondia leite, né?

Não desmenti nem confirmei.

A namorada do vovô Oto Faustino

Eninho era muito engraçado. Uma vez, rapazinho, se enrolou com uma mulher bem mais velha e criou toda uma narrativa que foi crescendo com a ajuda de outros humoristas da família, como a querida prima Ione Moreira, “tudotapaida”. A história começava sempre com o convite da “Pem” pro “Pem”, como ele dizia que ela pronunciava o “bem”:

- Ô “Pem”, tô “tuntchinha”, “Pem”. Vamu cumê farofa “tchi” miúdo... Aí eu “mióro”... “Pem, me escuta, Pem!

(Tradução: Ô bem, vamos comer farofa de miúdo... Aí eu melhoro)

Como a mulher era “peeem “ mais velha do que ele, a relação dava muito ingrediente para a narrativa ir evoluindo. Em certo ponto, ela tinha sido namorada do papai, do vovô Alexandre e, cúmulo dos cúmulos, do nosso bisavô, Oto Faustino, que Deus o tenha. Era uma história atrás da outra, sempre renovada, aperfeiçoada, editada, sempre com a “Pem”, sempre “tunchinha” a convidar para comer farofa “tchi” miúdo.

Não sei quem era a mulher, mas quem a conhecia dizia que não tinha nada daquilo, mas quem se importa? Virou uma personagem nossa, que permitia uma evolução constante.

Eninho botava tempero nas histórias, confirmava os contatos com outras gerações de sua “amada”, dava detalhes. Numa época, chegou inclusive a escrever alguns poemas, que não mostrava a ninguém. Um deles era o “Pai, me empresta seu batom”, que a Déborah e eu descobrimos no meio de seus cadernos por acaso. Tinha muita coisa engraçada.

Ele era mesmo assim, pena que a vida desviou seu caminho. Quero conservar na memória o menino bonito, o rapaz namorador e engraçado, trabalhador, proativo. Quero conviver para sempre com essa saudade gostosa.

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William Santiago
Enviado por William Santiago em 23/07/2021
Reeditado em 23/07/2021
Código do texto: T7305691
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