MEU IRMÃO

Meu irmão não é uma estatística. Ele é alguém que viveu intensamente até quase completar 75 anos. Aprendeu idiomas e instrumentos. Viajou, cantou, tocou, compôs. Fez da sua profissão uma forma de usar todos os dons que recebeu e multiplicou. Casou-se com a mulher mais anja que mulher. Tiveram filhas e filhos. Netas e netos. Aos 9 meses de idade, a poliomielite tentou derrubá-lo, deixando sequelas que ele carregou pra sempre. Sequelas talvez que lhe tenham feito corajoso pra viver essa vida plena - jogando futebol, voleibol, correndo "atrás de bola e fugindo da polícia". Aos 74, foi a Covid - dias antes da data em que tomaria a vacina.

Descuido? Fatalidade? Vontade de Deus? Nada disso. Foi antes da hora, assim como as 331.530 mil vidas brasileiras até agora, traídas pelo tempo e pelo projeto genocida em curso neste país. Não tinha medo da morte e brincou até o último minuto antes de ser intubado, através de chamadas de vídeo pelo celular. Fez selfies com o cateter de respiração já nas narinas. Uma autoestima invejável.

Mas não pense a Covid que o tenha derrubado. Ele aprendeu cedo a dar a volta por cima. Daquela cama do hospital ele voou direto para o infinito, onde não há morte nem dor. Onde todas as sequelas ficaram pra trás. A dor fica pra nós, que o perdemos tão cedo.