Fúria
Durante a minha infância ofereceram um cãozinho a um dos meus tios.
Um cão sem raça definida, como o povo diz, um rafeirinho.
Não me lembro da origem do nome, só me lembro que se chamava Fúria.
A casa, da minha avó materna, ganhou outro elemento ruidoso e traquinas, como se não bastassem já os netos a provocarem as maiores confusões pela casa fora.
Fúria era um cachorro simpático e amigo das nossas loucas brincadeiras. Com ele passámos bons momentos e partilhámos grandes tropelias.
Foi o grande amigo da nossa infância.
Era um prazer ver cão e netos em brincadeiras sem fim, risotas gerais e latidos de satisfação. Pobre Fúria, não tinha descanso.
Fúria foi crescendo e nós também.
O meu tio casou e mudou-se, o cão permaneceu em casa da minha avó.
Entretanto mudei-me para a cidade e os meus primos, tal como eu, foram crescendo. As brincadeiras foram diminuindo e o cão ficando mais tranquilo.
Um dia recebi uma terrível notícia, a minha avó (que eu julgava eterna) tinha falecido.
Uma grande tristeza instalou-se nos nossos corações. Ela não estava doente, a sua morte foi imprevista e prematura.
Foi o funeral e o cão acompanhou o corpo até á sua última morada.
No dia seguinte, do Fúria não existia nem rasto. Os meus tios procuraram mas ninguém o conseguiu encontrar, simplesmente tinha desaparecido.
Um dia alguém disse que estava deitado na sepultura da minha avó. Como tinham passado alguns dias o seu estado era lastimoso.
A minha tia Maria foi buscá-lo e teve de o transportar ao colo. Deu-lhe de comer diretamente na boca pois, recusava-se a ingerir qualquer coisa.
Com tanta dedicação, da nova dona, recuperou as forças e, novamente desapareceu.
Desconfiando do paradeiro, a minha tia foi ao cemitério. Lá estava novamente deitado, imóvel, no mesmo sítio. Novamente só saiu da campa ao colo, era uma dó de alma ver o seu sofrimento, parecia ir morrer de tanta saudade.
Durante várias vezes desapareceu e foi recuperado, as saudades da dona continuavam a ser tantas que ele queria continuar a sentir a sua presença. Só ali se sentia bem, parecia que queria morrer também.
A luta e carinho da minha tia foram tão grandes que finalmente o cão ganhou gosto pela vida. Compreendeu que o amor da nova dona era tão grande, ou maior do que aquele que tinha perdido.
Dava vontade de dizer que viveu feliz e amado para sempre o que foi uma quase verdade.
O Fúria acabou por morrer de velhice e acarinhado por toda a família.
Grande tia Maria que conseguiu o milagre que já não se considerava possível.
Quando ouço dizer que os animais não têm sentimentos eu lembro o Fúria e digo:
- Têm sim, e mais profundos e verdadeiros do que muita gente.
Tenho saudades deste cão verdadeiramente amigo.
Como eu gostaria que, a totalidade das pessoas fossem como ele, que amassem sem limites, que dessem tudo sem querer nada em troca enfim, que fossem genuinamente bons e puros.
Fortunata Fialho