A prima Liliane
As mais antigas lembranças da prima Liliane são as da casa da família na praça da igreja de São Francisco, em Pitangui. Naquele lugar ficava a residência dos nossos avós, Isabel e Alexandre. Era uma casa antiga, ao lado da casa dos Vasconcelos Carvalho, ou como se dizia: casa da Dona Mimi, mãe do várias vezes prefeito de Pitangui, Paulo ”Gambá” de Vasconcelos Carvalho. Depois, foi demolida para a construção da casa do Tio João Jacques, o pai da Liliane. Ele era um arquiteto intuitivo. Foi ele quem fez a planta da casa construída onde tinha sido a casa da vovó Abel, como a chamávamos. Mais tarde, fez a planta de uma nova casa, ao lado da anterior, onde morou até a mudança para Luz, terra onde nasceram os primos mais novos e cresceram os mais erados.
Nossos primeiros encontros com os primos eram no São Francisco. Tia Nilva, a mãe da Liliane, falava muito rápido e tratava os sobrinhos com fidalguia. Nesse ponto, Liliane era tia Nilva reescrita. Do nosso lado, sabíamos das regras de ouro da mamãe: façam xixi antes de sair de casa; lá não peçam nada; esperem que ofereçam; não repitam a comida; não briguem na mesa... e outras coisinhas mais. Mas tia Nilva não deixava nosso prato e copos vazios, mesmo sem qualquer solicitação nossa, o que, de maneira nenhuma, infringia as regras de Dona Terezinha. Nós não pedíamos: tia Nilva nos servia.
Depois das refeições, a cambada descia o quintal em direção à Washington Cançado, eterna Rua do Nascente, e acabava nos fundos da casa da dona Rosa do Zabilon, gente amiga da família de minha avó. Ali havia várias passagens que os meninos faziam para unir as duas casas e fazer atalho, tanto para a rua do Nascente, quanto para a praça da igreja de São Francisco. Havia jabuticaba, banana, paina que voava branca com o vento... e lugares para nos esconder. Eu sabia que o quintal era da vovó, já tinha brincado ali antes, a casa é que era invasora. Como todo quintal de avó, um paraíso.
Foi por 1967 que a prima Liliane começou a encontrar-se com o Reinaldo, meu parceiro de música, sob a ditadura dos hormônios. Sua tia era casada com um dos irmãos dele, um dos mais velhos. Já éramos amigos também pelo futebol, pois o Reinaldo, como todo Curé, era bom de bola e chegou a titular da Sociedade Esportiva Galícia, time infanto-juvenil que fundamos e que durou entre 1968 e 1969. Pois bem, na única foto que tiramos, num jogo contra o imbatível Manchester – não o time inglês, mas um combinado belorizontino trazido pelo Marquinho do Bilico (Dr. Marcos... Valadares) - que foi massacrado por nós por 6 a 2. Interessante é que nessa foto está a flâmula e a maleta de massagem do Galícia, idealizada pelo pai dela.
Mas o que tem a ver a Liliane com esse encontro de juvenis no campo do Clube Atlético Pitanguiense? Bom, o amor e os hormônios se combinaram para desfalcar a Sociedade Esportiva Galícia do mais promissor de seus atletas, o jovem Reinaldo Pereira de Souza, culpa exclusiva da paixão por minha prima. Reinaldo simplesmente não apareceu no campo do Atlético. Furou comigo, fiquei bravo com os dois. Ele ficou sabendo disso na noite daquele domingo. E ela muitos anos depois, em sua casa no Eldorado, depois que ingeri algum tipo de bebida alcoólica e culpei-a por termos ganhado só de 6 a 2. Se ela não tivesse segurado o Reinaldo, chegaríamos a 12 a 2, com certeza.
Mais tarde me mudei pra Belo Horizonte e fui morar na casa da Tia Eugênia, começando vida de estudante e de trabalho. Tio João Jacques se mudou para Luz e fiquei muitos anos sem ver meus primos, Liliane incluída.
Em Luz, começou a escrever para o jornal local, de Dona Cândida. Era muito boa nisso. Teve uma coluna por vários anos, assinada simplesmente por Lee. Eu me surpreendi com a qualidade de sua coluna, pois não tinha nunca ido a uma escola de jornalismo. Era puramente intuitiva.
O tempo passou, volta e meia tinha notícias dela. Quando cheguei da Arábia Saudita, fizeram um enorme encontro no Beco dos Canudos, tiramos várias fotos e, numa delas, aparece Liliane com a roupa árabe trazida do Oriente. Aí, já morava em Luz, estamos falando de 1975.
Pois ela nos deixou, assim, sem mais nem menos, como tantos nos estão deixando, pouco depois de seu aniversário, no último mês de abril. Brincando, brincando, isso já vai completar um ano. Mesmo no hospital, isolada pela Pandemia, ainda enviava mensagens otimistas pelo WhatsApp, sem lamúrias ou recriminações. A prima Liliane era iluminada e transmitia isso.
Quando acabar a Pandemia, já combinei juntar com o Dinho, irmão mais presente da prima Liliane, o Marquinho da Tia Eugênia, e os filhos dela, Jean e Brian. Pelo menos nós nos juntaremos para fazer o que mais ela gostava: reunir gente alegre, escutar música dos anos 60 e 70, cantar e aguentar, à medida que copos se esvaziam, os bebuns entusiasmados. Se as condições permitirem, com certeza, depois de ouvir Bee Gees e Jovem Guarda, vamos esticar o papo até a madrugada e ela estará de novo entre nós. Ficam aqui os convites para quem quiser se juntar ao grupo.