Quando ele era apenas meu filho
Hoje, pareço mais com meu pai do que comigo mesmo. Às vezes, penso que sou ele de novo. Às vezes – que viagem! – tenho certeza disso! Se é assim, então, aquele que eu sou aonde vai parar nesses momentos? Coisas da cabeça, principalmente quando me surpreendo com meus silêncios, que são os silêncios dele. A mão segurando o cigarro, mascando a língua, os olhos no horizonte, às vezes fechados, parecendo já alheio a esta vida, enxergando além da curva.
Hoje me pego assim, às vezes. E meu filho Iúri, de vez em quando, parece que é meu irmão. Aos 42 anos, já lhe aparecem rugas e sabedoria. Calado, também viaja com o olhar, às vezes tão compenetrado, tão alheio às circunstâncias que, uma vez, adolescente, virou um copo de requeijão cremoso pensando que fosse beber leite, ou sei lá o quê. Hoje escuto suas opiniões, não o confronto mais. Ele já tem muito a me ensinar e ensina.
Quando ele era apenas meu filho, dei-lhe uma surra, já gritei muito, tentei proibir de fumar, já tentei segurar o corcel do tempo que o levava de mim, pobre egoísta que fui! Ele, teimosamente, como dizem ser os taurinos, não se revoltava, não elevava a voz, não me respondia mal, mas seguia impávido o seu caminho. E assim até hoje, quarentão com dois filhos.
Quando ele era apenas meu filho, ele tentava segurar o pai, eu na empáfia dos 30, 40 anos, Doutor Sabe-Tudo, achando-me eterno. Ele - parecia brincadeira – mas era sério: me abraçava e me enlaçava, quando eu me debruçava sobre a sua cama a dar-lhe o beijo de boa noite, ele dizendo:
- Você não vai sair daqui nunca mais.
O "daqui" eram seus bracinhos. Mas eu saía, me desvencilhava de seus braços porque era o pai que não tinha tempo, tinha mil compromissos para cumprir. Compromissos com o ego, com as contas, com o banco, cheques pré-datados, compromissos com as ilusões, compromissos com os compromissos.
Mas acho que não fui tão mau assim. Vamos ver os pontos positivos que mais marcaram nossas vidas. Lembro-me do passeio ao Rio de Janeiro, ele com seus 16 anos, quando fomos juntos para ver um Fla-Flu no Maracanã e, de lambuja, fui pegar um visto para os Estados Unidos para visitar aquele santo visionário que era meu amigo Aquiles Cordeiro em Nova York. Depois do Fla-Flu, ficamos na parada de ônibus com medo de pegar condução por causa da violência da torcida, ele uma criança. Um pernambucano, radicado no Rio há muito tempo, nos orientou:
- Não peguem ônibus agora. Esperem esvaziar a parada, mas quando esvaziar tem que ter cuidado com assalto.
E saímos lá pelas 3 da manhã, se bem me recordo, para dormir num albergue em Botafogo.
Nessa viagem, repito, não consegui o visto (1990 foi a década em que mineiro estava marcado, por causa da imigração ilegal de Valadares para os EUA). Mas Iúri e eu, em compensação, tivemos uma aventura de solidariedade na rodoviária Novo Rio, não sei se ele se lembra. Apareceu um jogador de futebol do meu América Mineiro pedindo ajuda para comprar passagem para Belo Horizonte. Tinham-lhe batido a carteira, toda oferecida no bolso de trás de seus jeans coladinhos, que ingenuidade! Naquele dia ele também tinha ido pedir visto no consulado dos Estados Unidos, porque tinha um contrato assinado com um clube daquele país. Carregava um envelope enorme, cheio de documentos – ainda bem - entre os quais cópia do contrato de trabalho com o clube americano.
Ele estava muito envergonhado, pedindo dinheiro para passagem, mas até aquele momento não tinha conseguido nada. Antes de tudo, ofereci-me para pagar seu jantar, porque desconfiei – e ele confessou mais tarde - que tinha passado o dia inteiro sem comer. Ajudamos, sim. Pedimos dinheiro a cada pessoa que estava na fila dos guichês na rodoviária e conseguimos o suficiente para comprar-lhe passagem para Belo Horizonte. Não me lembro do nome do jogador, mas o apelido era "Maravilha", emprestado do Dario, o maior artilheiro do Galo, pelo menos em estatura. Foi uma aventura. Se fosse para mim, eu não teria tido coragem de ir atrás do prejuízo.
Outro ponto a meu favor: também o incentivava a jogar no gol, a ser como Ubaldo Fillol, então goleiro argentino do Flamengo. Em frente da casa de minha avó depositavam areia de construção. Minha irmã estava fazendo ali a sua casa. No monte de areia situava-se o gol onde o meu Ubaldo Fillol defendia os chutes do pai. Tenho a foto com sua carinha de 10 anos, concentrado nos chutes meus e de outros, querendo fazer suas pontes, que era como chamavam as defesas sensacionais que os goleiros faziam, atirando-se em direção à bola.
Isso quando era apenas meu filho. A vida seguiu seu rumo, erros e acertos de cada lado, e foi esculpindo novas pessoas na matriz inicial. Iúri agora, além de filho, é meu irmão, meu pai, o pai dos meus netos, meu amigo, meu músico, meu cantor, meu motorista de confiança, meu goleiro preferido. Assim como os Pereira, família do meu pai, quase não precisamos falar para dizer muita coisa um ao outro. As almas se comunicam em silêncio.
(A Iúri Santiago)