Cessa não pede licença
Cedinho, o portão de ripas da casa da avó rangia, empenado, riscando o chão de geometria curva, avisando quem chegava. Era a preta Cessa. Falava alto, cumprimentando os velhos. Logo que chegava, o pai, já pronto para o trabalho, terno e gravata, despedia-se das crianças e as apertava num abraço de Leite de Rosas e brilhantina Glostora.
Cessa ia rompendo pelo lote baldio, onde havia um capinzal que servia de quarador, um varal, um jirau e um tanque de lavar roupas, entre a casa da avó e a das crianças. Enquanto caminhava e conversava, já ia recolhendo roupas e escutando do pai as recomendações da troca de turno.
As crianças guardaram o calor e o perfume do abraço do pai para o resto da vida, mas, naquele momento, o sentido já estava em quem ia abraçar Cessa primeiro. Saltavam nos seus braços pra conseguir o primeiro abraço. Quase a derrubavam. Pano no cabelo, cheirosa, a preta Cessa vinha cuidar das crianças. A carapinha branquinha aparecia entre as dobras do pano na cabeça. A mãe ia cuidar da Piquitita em Belo Horizonte e deixava os outros três filhos com ela, do meio-dia às seis, até o pai chegar do trabalho.
- Pode ir, Dininho. Tá na sua hora.
Um pouco antes do Ângelus, eles já estavam lavados, vestidos, penteados. Punha-os sentadinhos no alpendre para esperar. O pai aparecia na Ponta do Beco, vinha devagar, mascando língua e olhando para o chão. Ela o esperava pacientemente e só dizia adeus aos meninos quando o pai entrava e fechava o portãozinho da rua. A janta já estava pronta, quase sempre uma sopa de verduras com carne moída ou asinha de frango.
Piquitita, quando estava em casa, era a mais vaidosa, brincava de pentear os cabelos em frente a uma caçarola de alumínio, que fazia de espelho. Dizia que era a Cinderela. No entanto, sua presença em casa rareava, porque o tratamento requeria cada vez mais tempo em Belo Horizonte e menos com os três irmãos. Cessa foi, por muitos meses, durante o calvário da doença da Piquitita, o esteio que manteve a saúde e o equilíbrio das crianças. A mãe na estrada, de Pitangui a Belo Horizonte, de Belo Horizonte a Pitangui, às vezes direto, uma semana inteira.
Cessa quer dar segurança e ter um ajudante, então dá responsabilidade ao mais velho:
- Filho, cê já tá grande, já pode me ajudar. Cuida das meninas enquanto eu estendo a roupa no varal. Você é o homem da casa, enquanto seu pai tá no trabalho. Não deixa nenhuma sair pra rua. Brinca no quintal.
- Tá bom, Vó. Por que a senhora e Vô Fortunato são pretos?
- Somos lá da África. Lá todo mundo é preto, que nem a gente.
Fortunato é seu marido, coitado, já idoso, passa as tardes sozinho, mas não reclama. Ele sabe que é preciso, D. Terezinha só deixa os filhos com sua mulher. Não tiveram filhos, ele chama os meninos de netos. E os meninos, apesar da sisudez de Fortunato, gostam dele. É o vô preto, que destila bondade em silêncio.
Raramente sai de casa. Quando vão visitá-lo, os meninos o olham desconfiados, esperando um convite. Querem conversar, mas não se encorajam, ficam em silêncio observando-o atentamente, enquanto ele masca a língua, cheira rapé e fuma cigarro de palha. De repente, ele se lembra do mundo, levanta os braços e pede um abraço. Os meninos se assanham e saltam no seu colo.
Anos mais tarde, já conhecedor do mundo, o mais velho dos meninos volta a Pitangui, pergunta por eles, a mãe responde:
- Cessa ficou viúva, Fortunato morreu. Vamos lá. Mora na Fundição, é pertinho. É só passar o Cinema da Fábrica, a casa do Expedicionário Aguiar e virar à direita, na descida. Chama sua irmã, ela gosta da Cessa.
No caminho, no frio de junho, o Ângelus como fundo musical, a irmã elogia:
- Nunca vi uma casa tão limpinha. Até o terreiro ela varre. Ajunta as folhas secas da mangueira piqui e faz fogueirinha.
Numa outra viagem, já moço viajado, pergunta por ela, a mãe de novo:
– Vamos na casa da Cessa. Mudou pra Vila Vicentina. Tá doente.
Conversam um pouco. Ela, velhinha, gargalha como antes e fala pelos cotovelos. A alegria não envelhecera.
- É, filho, quanto tempo! A nega tá mais pra lá do que pra cá. Tá dobrando a serra. Demora não, senão você não vê mais a nega.
- Que nada, Vó! Cê tá é forte demais. Isso é saudade do vô Fortunato.
- Demais. Rezo todo dia pro meu véio.
Na terceira vez, de novo ele, uns anos depois, a resposta da mãe:
- Morreu, coitada, bem velhinha, sempre alegre, nunca se queixou de nada. Tá na Terra Santa. A gente reza missa por ela e não falha um Finados na sepultura dela.
Nem precisava, Cessa subiu aos céus, com certeza. Que nem a Irene da poesia, Cessa não tinha que pedir licença. Estava em casa, muita gente a esperava, feliz, porque já ia chegar contando caso: depois dela, não ia faltar assunto.