A CASTRO ALVES

A GARÇA

Castro Alves

Eu sou como a garça triste

Que mora à beira do rio,

As orvalhadas da noite

Me fazem tremer de frio.

Me fazem tremer de frio

Como os juncos da lagoa;

Feliz da araponga errante

Que é livre, que livre voa.

Que é livre, que livre voa

Para as bandas do seu ninho,

E nas braúnas à tarde

Canta longe do caminho.

Canta longe do caminho.

Por onde o vaqueiro trilha,

Se quer descansar as asas

Tem a palmeira, a baunilha.

Tem a palmeira, a baunilha,

Tem o brejo, a lavadeira,

Tem as campinas, as flores,

Tem a relva, a trepadeira,

Tem a relva, a trepadeira,

Todas têm os seus amores,

Eu não tenho mãe nem filhos,

Nem irmão, nem lar, nem flores".

A cantiga cessou. . . Vinha da estrada

A trote largo, linda cavalhada

De estranho viajor,

Na porta da fazenda eles paravam,

Das mulas boleadas apeavam

E batiam na porta do senhor.

Figuras pelo sol tisnadas, lúbricas,

Sorrisos sensuais, sinistro olhar,

Os bigodes retorcidos,

O cigarro a fumegar,

O rebenque prateado

Do pulso dependurado,

Largas chilenas luzidas,

Que vão tinindo no chão,

E as garruchas embebidas

No bordado cinturão.

A porta da fazenda foi aberta;

Entraram no salão.

Por que tremes mulher? A noite é calma,

Um bulício remoto agita a palma

Do vasto coqueiral.

Tem pérolas o rio, a noite lumes,

A mata sombras, o sertão perfumes,

Murmúrio o bananal.

Por que tremes, mulher? Que estranho crime,

Que remorso cruel assim te oprime

E te curva a cerviz?

O que nas dobras do vestido ocultas?

É um roubo talvez que aí sepultas?

É seu filho ... Infeliz! ...

Ser mãe é um crime, ter um filho - roubo!

Amá-lo uma loucura! Alma de lodo,

Para ti - não há luz.

Tens a noite no corpo, a noite na alma,

Pedra que a humanidade pisa calma,

— Cristo que verga à cruz!

E(X)SGARÇA (Paródia)

Pássaro errante e solitário

Exilado do lar, desassossego

Pejo só, pó, ímpio, ímpar, infante

Morada-abismo, prenhe de medo.

Morada-abismo, prenhe de medo

Árvore frágil, timbre sepulcral

Separada noite, aflito dia

Penas, apenas vôo abissal.

Penas, apenas vôo abissal

Sem colo, cala, dor a tiracolo

Olhos amargos, mãos vãs, boca seca

Céu vazado, o insalubre solo.

Céu vazado, o insalubre solo

Favela, fivela! Cela!...A presa!...

Insulto! O vulto mira o Nada

A vida! Mente, sente, tenta sê-la.

A vida! Mente, sente, tenta sê-la

Lá... luxo, luxúria, asfalto, salto

Ninho covarde, raso e mesquinho

Discriminação! Não! Partido Alto.

Discriminação! Não! Partido Alto

Teatro tétrico e tela torta

Passo passante tão-somente só

Vida fadiga e brotos aborta.

O lamento cessa... Batem à porta!

Leões de ouro vestidos, garra morta

Olho alegre, alma anuviada

Máscaras desdentadas, ferros

Mistura de dor e berros

Sangue, unhas, veia inebriada.

Sono maldito, tímpanos, estampidos

Espectros, sombras, sanhas assombradas

Sádica dança, música, desnuda múmia

Fumaça fétida, rotas arrebentadas.

Violência às violetas de lírios

Violáceas cores, canto, delírios!

Sonhos, amores, dor amordaçada

Morde o sonho, escarra a saliva

Vomita ânsias, esperanças, morte!...

Corte precoce, sal, mal, escorre a vida.

Porta escancarada!

Começa funesta festa.

Choro! Mulher, da mãe cobrança!

Destino? Desatino? Intolerância!

Trilogia desalmada, mão armada:

Negritude, pobreza, desalentado

Aqui não chega o Estado

Neste estado, vida acorrentada.

Mãe, impotência, feto, desastre,

Plano arquitetado... arte

Não há tela, nem palco, nem som

Sociedade, aves da mesma gaiola

Acre, hipócrita, desconsola

Dívidas! Não dividido dom.

Esgarçado mundo, desgraças, egoísmo

Lado lodoso, pássaro... Cinismo!

Afônico, atônito, ácido

Mãe! Rebentos do regaço

Arrebatados à revelia... braços

Noite! Açoite! Perda!... Tráfico!...

Vivianna di Castro
Enviado por Vivianna di Castro em 19/03/2011
Reeditado em 02/10/2011
Código do texto: T2857414