PAI
PAI
Tenho muito de ti em mim, sou muito de ti em mim, mas, não encontro neste instante linguagem certa, senão alguma coragem para falar de ti, coragem feita de fragmentos, de quase nada de coisas precisas, de coisas com algo de ordem, palavra que fale dos mistérios da tua alma, dos teus interiores, certamente mistérios que nós, teus filhos e tua mulher, parentes, amigos, os teus companheiros de luta política não conseguimos atingir, talvez por inércia, comodismo, talvez porque romper com os modos óbvios de ti, de agir, de dizer, de calar, nos obrigasse a uma análise funda também dos nossos modos de calar, de dizer, de agir e isso nos seria doloroso em demasiado e nos forçaria a mudanças difíceis, dessas mudanças fundamentais cuja empreitada não se quer enfrentar.
Pai que trabalhava todo o tempo; com os cabelos e as barbas que cortava tecia, sozinho, nossa sobrevivência de cada dia; nas outras horas trabalhava para a Revolução que viria para resgatar os destinos da Espécie, a Revolução que jamais veio nem virá.
Pai que monopolizava as responsabilidades e isso, erro grave julgado acerto, criou-nos uma dependência e uma irresponsabilidade perigosas: difícil criar-se a si mesmo quando se tem alguém tão onipotente por perto, por dentro, junto de nós todo o tempo. Desta onipotência também padecia nossa mãe, na ação em seus próprios territórios, os territórios interiores do lar.
Pai com o qual, a despeito das diferenças de temperamento, tive sempre fundíssimas afinidades eletivas, quase nunca expressas em palavras. Guardo tantas cenas de nós dois, cenas nossas!
Eu, meninazinha e tu já me dizendo da Revolução pela qual darias a vida não fora a existência de nós, teus filhos e tua mulher, algo que eu compreendia intuitivamente, sem que me dissesses. Para comemorá-la, a Revolução, compraste um champanhe especial que, certo dia, alguém indevidamente bebeu antes do tempo que jamais viria.
Lembro-me de nós dois assistindo aos Festivais de Música Popular Brasileira. Tu, silencioso, mas atento, participando a seu modo; eu, com toda a euforia daqueles anos de início de adolescência.
Lembro-me de teus olhares inquisitivos... desaprovadores... diante de qualquer deslize nosso; lembro-me do teu olhar cheio de orgulho quando entrei na Faculdade de Letras, na USP.
Lembro-me de mim, muitos anos depois, saindo da PUC, onde estudava Filosofia, voltando às pressas para casa, sem necessidade aparente - hoje sei que por pura premonição - a tempo de ver os sintomas iniciais da trombose cerebral que te levaria de nós menos de duas semanas depois.
Era como se tivesses escolhido o tempo de partir. O diabetes se aguçara muito e tu te recusaste a tratamento. Tu, para quem a religião sempre fora "o ópio do povo", tinhas visões. Tu, tão cristão nos teus atos, no sentido da justiça que aprendi contigo. Tu que, tantas vezes enganado, jamais enganaste ninguém. É verdade que o que mais víamos de ti era tua dominação, certo despotismo mesmo, nas palavras, no olhar, nos gestos. Era o óbvio, o imediato de ver, o fácil; não era o teu tudo, o fundo escondia as enormes riquezas de sentimento, teu amor incomensurável.
De ti, meu pai, quero ter sempre diante da alma e dos olhos a herança que nos deixaste: o senso de honra, o desejo de justiça, o cumprimento às vezes tão difícil das coisas do dever. Neste momento de suprema angústia, por sentir e saber que deixo de existir no interior de outro homem por mim muito amado, amado para sempre como tu, pai, o és em mim, um outro homem amado há anos demasiados, de repente semelhando um desconhecido, quero deixar aqui um pálido testemunho dos teus sonhos, dos sonhos de um Tempo Novo para os homens, do sonho de um bom futuro para os teus filhos.
Ah, as coisas que nunca nos disseste, tua timidez, tua aversão aos derramamentos emocionais. No entanto, à tua revelia, quanta carência deves ter carregado de abraços fundos, de lágrimas de emoção, lágrimas tuas, pai, ser nascido e fruto de um tempo em que tais coisas não cabiam bem aos homens.
Pai, só posso te dizer que nesses 20 anos da tua partida tenho feito o que posso, o que consigo para manter a herança interior e exterior que nos deixaste. É verdade que tenho falhado muito, pai. Falhado como irmã, falhado como filha de minha mãe, falhado como mãe de minha mãe; falhado no que se refere aos meus sonhos como mulher, como cidadã, como profissional. Tenho falhado muito, pai. Apesar disso, tenho procurado não te trair, pai, não trair a confiança depositada no caráter que plantaste em mim. Tento, pai, ser-te fiel, todos os dias, eu te dou minha palavra de honra; ser-te fiel, pai, apesar dos erros, dos equívocos, dos fracassos.
Não tenho claro, em mim, se algo conquistei, efetivamente, nesta vida, pai. Não tenho claro se ainda virei algo a conquistar. A ti, que me conheceste, que do algum lugar onde estiveres, sei que permaneces me conhecendo para além de toda e qualquer aparência, perdoa-me por tudo o que não cumpri segundo a tua expectativa. Perdoa-me, pai.
Agradeço aos Poderes Superiores por tê-lo tido e por tê-lo como pai e peço a esses mesmos Poderes pela tua Paz, por tua sempre Evolução aí, no Plano onde agora estás, onde sei que estás.
Zuleika dos Reis.
Texto original de 13 de agosto de 2006, reescrito e ampliado na manhã de 01 de agosto de 2010.