Escuridão

A Alejandro González Iñarritú.

Dá-me tu uma esmola, quem a um cego ajuda lhe é abertas as grades do paraíso, A cego só a morte acalenta e tapa-lhe a boca desdentada, a filha encarou os olhos negros e vazios do cego a quem o pai maltratara. A Argentina fode de quatro com o Uruguai, Qual?, Tu assim o pensas, o rapaz abraçou o companheiro invadido por uma felicidade incomum, até então. Vais ao jogo?, Não perturbes-me, mulher!, a jovem senhora colocou o café fumegante na xícara com a porcelana lascada do único jogo a lhe restara, A puta, engoliu a saliva, A puta estará lá?, Deixes-me, o marido fechou o punho com a ira que irrigava-lhe os tecidos, Não és macho nem para me encher a barriga, o vômito desceu-lha pela garganta seca, Tu não és mulher para segurar nem a comida que engoles, a mulher estapeou a face barbuda do marido, À face da cansada esposa viam-se marcados os dedos fortes do homem, o café esfriava na xícara.

Danças comigo, o rapaz louro estendeu a mão para o companheiro, que aceitou o convite com singular interesse. Ligou o toca-discos da camioneta e dançaram ao som de uma valsa de Debussy tendo o pôr-do-sol como um pano de fundo, Amanhã, suspiraram, abraçaram-se meio à gramínea orvalhada. O pai acomodou à sua cercania a filha obstinada, Queres algodão-doce?, com os olhos molhados para o homem a quem chamava pai, fechou os olhos. Pegou as chaves do carro, os prantos da mulher ouviram-se ao longe, Desgraçado!, ligou o motor como se a nada escutasse.

A bola rolou na gramínea úmida do Morumbi. O clima inóspito comprimia as partículas dificultando a transmissão do som pelas partículas rarefeitas. Papai, estou cega!, a torcida argentina gritou causa de um chute desenfreado do jogador uruguaio ao gol, Que dizes, garota?, Cega estou, O que vês?. Levantou-se calmamente, limpou o rosto salgado, ajeitou a saia em derredor do seu quadril seco, retirou de trás das toalhas no armário uma pistola de prata. O rapaz pegou os ingressos no porta-luvas da camioneta, o seu companheiro, ao volante, tocou em seus braços, Dê-me prazer, a música lírica que saía do toca-discos misturou-se aos gemidos intensos de prazer.

A mulher colocou a pistola em sua bolsa de couro puído, lavou o rosto e olhou-se no espelho, Vais me pagar, passou as mãos pelas marcas de varíola em sua face, mordeu os lábios, saiu decidida de casa, avistou um carro parado. À cerca do pai desesperado os torcedores abraçavam-se, em êxtase, por um gol argentino. A filha desfalecera aos braços do pai. Gritos ouviam-se nas outras arquibancadas, Cega!, Cega!. A mulher golpeou o vidro com o cano da pistola, as lágrimas saíam-lhe pelos olhos obstinados, Que fazes, senhora?, A chave!, a mulher disse ao motorista apontando-lhe a pistola, o motorista pasmo saiu do carro deixando a chave na ignição.

Tu me pagas!, a mulher praguejava ao volante, o choro embaralhava-se a fala arrastada pelo catarro que desciam pela garganta, a visão embaçou, um branco intenso como se o sol assim o quisesse, perdeu o controle do volante. Os gritos pararam o jogo, já notavam-se diversas crianças ao colo de seus pais, as mães choravam desesperadas pela súbita enfermidade que abatera sobre seus filhos. Mozart é chato, disse o rapaz lambendo os beiços carnosos, igual Shakespeare e sua Julieta, tedioso. Um estrondo. A mulher cega lançou-se rumo ao abismo, antes de chocar com o outro automóvel, com as vistas esbranquiçadas, acertou-se com a pistola colada ao peito murcho. A multidão ajuntou-se ao redor da camioneta, Morreram, por certo, disse um curioso, Aquele carro acertou-o em cheio, A morte sabe o momento certo.

O pai levantou-se, Estou cego!, Cego!, os jogadores chocavam-se uns com os outros, o goleiro agarrou-se à trave do gol, choravam como criançolas assustadas, É o fim do mundo!, apregoava um homem. Nas ruas as pessoas batiam as cabeças nos postes, encontravam-se de supetão, a filha despertou com os gritos intensos, o pai desesperado pegou aos braços e encaminhou-se juntamente com a multidão em pânico. À entrada norte um cego pedia calmamente suas esmolas para comprar o que engolir, ao ouvir os gritos pegou o seu saco de dormir e dirigiu-se ao portão próximo, a multidão confrontou-se à saída, a menina desgarrou do pai pisoteado pela enfurecida reunião, o choro escapou pela bola, o cego sentiu uma presença conhecida, abriu os olhos enferrujados, avistou uma menininha de laço no cabelo, aproximou-se, Venha comigo, a menina estendeu os braços. O sol continuava a brilhar estranhamente, seus raios eram tão intensos que poderiam confundir a vista de quem sob ele estivesse.

Fim

Heitor Gullar
Enviado por Heitor Gullar em 13/12/2009
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