A Fernando Pessoa - 11 -
Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes nas grandes cidades
E a mão de mistério que abafa o bulício,
E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe
Para uma sensação exata e precisa e ativa da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios
E que misterioso o fundo unânime das ruas,
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,
Ó do "Sentimento de um Ocidental"!
Que inquietação profunda, que desejo de outras coisas,
Que nem são países, nem momentos, nem vidas,
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Umedece interiormente o instante lento e longínquo!
Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,
Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas
Como um mendigo de sensações impossíveis
Que não sabe quem lhas possa dar ...
Quando eu morrer,
Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,
Por aquele caminho cuja idéia se não pode encarar de frente,
Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos
Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,
Seja por esta hora condigna dos tédios que tive,
Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,
Por esta hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,
Platão sonhando viu a idéia de Deus
Esculpir corpo e existência nitidamente plausível.
Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.
Seja por esta hora que me leveis a enterrar,
Por esta hora que eu não sei como viver,
Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,
Por esta hora cuja misericórdia é torturada e excessiva,
Cujas sombras vêm de qualquer outra coisa que não as coisas,
Cuja passagem não roça vestes no chão da Vida Sensível
Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.
Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter.
Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio
A esta hora em que eu não posso ver que tu me olhas,
Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria
— Tu que me conheces — quem eu sou ...
( Triste e lindo - milagre do Poeta)
Maria Neusa em setembro de 2009