Artigos em profusão
Por definição, o artigo definido é individualizante, ou seja, ele particulariza o substantivo que determina. Assim sendo, ‘um menino’ é uma referência a ‘um menino’ qualquer, ao passo que ‘o menino’ é referência a uma criança já conhecida, individualizada. Um escritor de histórias infantis poderia começar seu texto assim: ‘Era uma vez um menino que vivia em um reino cheio, muito cheio mesmo de bichos. O menino sabia o nome de todas aquelas criaturas...' . O personagem foi apresentado vagamente com o artigo indefinido e, depois, retomado com o artigo definido.
E por que faço essa apresentação? Para dizer, por exemplo, que, se os nomes próprios são, por natureza, individualizantes, não haveria a necessidade de serem precedidos de artigo. Não sou eu quem o diz. Isso está escrito na gramática do professor Celso Cunha, um famoso estudioso de nossa língua, que viveu no século passado.
Mas – convenhamos – não é bem isso que ocorre. Dizemos, frequentemente, o Brasil, o Paraguai, a China, a Europa, o Rio Grande do Sul, o Paulo, o João... Viram? Os nomes próprios estão determinados por um artigo. A questão que coloco é a seguinte: quando usar o artigo definido antes de nomes de pessoas?
A tradição da língua – registrada nas gramáticas – consagrou que a presença do artigo antes de nomes próprios indica intimidade, familiaridade; já a ausência do artigo traduz formalidade, não intimidade, reverência. Crio três exemplos e comento:
O Carlos se preparou bem para a redação e obteve nota máxima no Enem. – Refiro-me a uma pessoa íntima, conhecida. É claro que poderia omitir o artigo, mudando, assim, um pouco a semântica da construção.
Sarney tentou conter a inflação no Brasil, mas seu plano fracassou. – Sendo eu o autor da frase, não seria adequado o emprego do artigo, pois me refiro a uma personalidade histórica, distante das minhas relações. Um familiar do ex-presidente diria, perfeitamente, ‘o Sarney’.
Pelé foi um atleta genial. – Minha intenção é produzir a frase com certo distanciamento, tratando ‘Pelé’ como um personagem da história do futebol. Daí a opção pela ausência de artigo.
No português midiático moderno, tenho observado uma profusão de artigos, tornando mais tênue a fronteira entre o familiar e o não familiar. É artigo para todos... Há poucos dias ouvimos, no Jornal Nacional, ‘o Tony Ramos’, construção explicável pela aproximação entre Bonner e o ator, e, certamente, o âncora assim se expressou considerando a familiaridade das pessoas com o artista, que há tantos anos invade, com sua simpatia, nossos lares.
A verdade, repito, é que, na mídia, a fronteira entre os usos vai diminuindo. Não é raro ouvirmos algo assim: ‘O Juca passa pro Zé, que dribla o Pita, que vê o Nico bem colocado para vazar o gol do Dico’. Muitos artigos, não? Experimente a narração sem os artigos. É certo que ficamos com uma narração mais enxuta e sem falsas intimidades...
A observação que faço – como veem – refere-se à língua falada midiática, que, certamente, é matriz de mudanças na língua escrita. Aguardemos. *
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