NÃO AMOLA
Eu chorava quando entrei na sala. Estava emburrado, havia brigado com minha irmã, ouvido uma bela bronca da minha mãe e estava de mal com o mundo.
Quando entrei na sala vi aquela figura por lá. Era um senhor idoso de barba branca, usava roupas vermelhas e passava uma tesoura em uma máquina que fazia um barulho estranho. Estava sentado em nosso sofá, o mais pequeno, aquele marrom rasgado e batia devagar o pé no tapete falso persa de mamãe. Deu-me a impressão de que em sua mente cantarolava uma canção enquanto marcava o compasso com os pés. Estava muito concentrado em seu serviço. Seu rosto trazia uma expressão de paz e tranquilidade, e dava-me a impressão de que ele sabia tudo o que acontecia ao seu redor e conhecia as pessoas no seu intimo. Vi-o imediatamente como um sábio ou mentor.
Ao vislumbrar aquela figura minha ira ameaçou abrandar, mas outra onda veio sobre mim. Estava farto daquela casa e com raiva do mundo inteiro
Meu pai me chamou e então me apresentou ao velho. Percebi que haviam se tornado amigos rapidamente. O carisma daquele homem podia ser sentido sem que ele proferisse uma só palavra. Eu entendi, sem ainda consegui entender muito bem as coisas.
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-Olha aqui senhor Leon, esse é meu filho Marquinho, ele é chorão mesmo não repara não.
O tal do senhor Leon parou o trabalho deu-me um belo sorriso e disse.
-Oh que rapaz bacana. Tudo bem?
As palavras melosas fizeram aflorar novamente minha raiva que ia e vinha.
Eu não queria conversa. E disse a ele:
- Ah não amola
-Olha a educação – falou meu pai muito bravo.
Nosso visitante soltou uma gargalhada e disse:
-Ora, como eu não vou amolar se eu sou o amolador? O homem que amola facas e tesouras, para isso está aqui. Eu vim para amolar e você não quer que eu amole. Que atrapalhar meu trabalho. Que coisa louca!
Então eu comecei a rir e ele também. Seu jeito me afagou e trouxe-me a calma. Meu pai que parecia um pouco chateado com meu mau jeito e pronto para me dar uma bronca riu também. Depois pediu licença, saiu da sala e me deixou sozinho com o velho.
Ele me olhava e sorria, mas de vez em quando girava o olhar pela sala indo de um ponto a outro. Parecia reparar os contornos da casa e o cenário. Parou o olhar por alguns minutos sobre a janela, a estante de fórmica, a nossa tv preto e branco de 24 polegadas. A radiola de madeira no outro canto. Parecia tentar mapear cada canto daquela casa como um ladrão que desejava descobrir um meio de voltar à noite. O que ele procurava? Podia sentir sua mente trabalhando e tentando encontrar a saída para algum problema. Parecia não saber muito bem o que dizer.
Eu também estava um pouco confuso. Depois de alguns momentos de inercia resolvi agir.
-Espera um pouco. Fui até a geladeira e peguei uma forma de bolo que mamãe havia feito para o café da manhã. Apanhei também a garrafa de café na pia e coloquei sobre a mesa de fórmica da cozinha. E o chamei:
-Vem aqui tomar um café.
Ele veio andando muito devagar, balançando aquela enorme pança que escapava por baixo da blusa vermelha de malha. Devia ter artrite, reumatismo ou algo assim, mancava um pouco e parecia sentir uma dor que se externava em pequenos gemidinhos. Quando chegou, ficou admirado também com a cozinha e novamente seus olhares passearam indo pousar no fogão de malta da mamãe, na estante vermelha que àquela época chamávamos de guarda-comida e pararam sorrindo sobre um canto da cozinha.
-Olha vocês têm um fogão de lenha. Que legal... É muito gostosa a comida no fogão de lenha.
-É, meu pai fez ele igualzinho ao da minha vó que morreu, a mãe dele.
-E ele tem uma chaminé.
-É claro.
-Mas é pequena demais. Que pena!
-Como assim? É pra sair a fumaça.
Servi o café e o bolo a ele.
-O senhor parece com o papai Noel. -
-Hohoho – sua risada espalhava uma alegria gostosa pela casa
- Todos dizem isso. Acho que é por causa da barba e também porque eu uso roupas vermelhas, sempre gostei de roupa vermelha. Mas eu moro aqui mesmo nessa cidade não é no polo norte não.
¬-E vai de casa em casa amolando.
-Eu amolo sim, tesouros, facas, e pessoas, tem que gente que não gosta da minha visita. Mas eu vou de casa em casa sim, e gosto muito de andar à noite.
–À noite? Estranho. O senhor vai por aí de carro?
–Sim, pode-se dizer que tenho um carro, meu carro é veloz como ele só, voo por aí, mas diria que a tração é um pouco diferente dos outros carros. Amo meus pequenos motores.
–Não estou entendendo.
-Deixa pra lá.
-O senhor disse que amola pessoas, as incomoda?
-Não, apenas tento afia-las, aparar alguma coisa que esteja áspera, talvez torna-la um pouquinho melhor com algumas dicas bobas. Uma palavrinha de ânimo e um hohozinho às vezes têm um grande poder. Digamos que seja esse o meu presente.
- Vai me dizer que também dá brinquedos aos meninos?
Ele abriu o mais terno dos sorrisos, enrugando ainda mais os cantos dos olhos já tão enrugados, numa expressão de extrema felicidade. Aquela parte da conversa o agradou bastante. Vi faíscas de regozijo escapar daqueles olhos azuis muito brilhantes.
-Às vezes, mas só para aqueles que eu gosto. Apenas para os que são bonzinhos.
-Eu não sou.
-Por que diz isso?
-Minha mãe vive me xingando, diz que eu sou muito mal criado. E não deixa fazer quase nada. Tudo o que eu faço é errado. Não posso nem sujar a casa, nem quebrar as coisas, nem destruir nada, nem falar nome feio, nem xingar minha irmã, nem fazer malcriação, não pode isso, não pode aquilo. Ditadora, repressora. Eu não gosto dela.
-Hohoho, não pode fazer nada? Nada dessas bênçãos que você disse aí. Pobre anjo injustiçado. Vai ver ela só quer seu bem e quer te ensinar algumas coisas. Mas você não vai compreender isso agora. Talvez mais tarde você entenda tudo. Eu posso lhe garantir uma coisa, eu sei, mesmo sem conhecer você, eu sei. Você é um bom menino. Papai do céu gosta muito de você e com o tempo tudo se ajeita. Você diz que não gosta dela, mas já imaginou se ela morresse hoje. Como seria. Imagina só mamãe agora dentro do caixão e você nunca mais a veria, nem nunca mais levaria uma bronca dela. Você ia se sentir muito feliz não é mesmo? Aliviado. Imagina só nunca mais ouvir a voz dela, nunca mais ter esse bolo gostoso para comer. Fecha os olhinhos e imagina só. A casa ia ficar vazia. Papai chorando, irmãzinha chorando imagina só...
Acho que ele foi um pouco cruel aqui.
-Não, não isso não, eu quero as broncas.
-Haha, hoho, agora você quer. Pense bem. Ela faz tudo é para te proteger, para que a casa não seja destruída, para conter o furacão, para que nada de mau lhe aconteça.
- Tá certo, pensando bem eu exagero às vezes.
Então ele me disse muitas coisas e a conversa agradável estendeu-se pela tarde. Entreteu-me com um papo agradável terno e edificante. Contou-me coisas de sua vida, de onde morava, de algumas pessoas que trabalham em sua pequena fábrica de objetos de madeira, em uma parte da cidade onde fazia muito frio, disse que curiosamente todos eles eram bem baixinhos, falou sobre sua esposa que ele a chamava de Leona embora esse não fosse seu verdadeiro nome. Que gostava de usar meias grandes, sempre gostou de meias grandes, e sentia um enorme prazer quando encontrava nas casas que visitava um fogão de lenha com chaminé igual ao nosso e uma lareira. Era fascinado pelo natal com suas luzes, panetones, rabanadas e toda sorte de comidas gostosas. Tocava a grande pança enquanto falava de comida. Que adorava os meninos bonzinhos e discorreu sobre muitas coisas, deu-me algumas lições, me fez refletir bastante sobre meu comportamento e sobre muitas coisas e Ao final eu o obedecia e concordava com ele.
Tornei-me outra pessoa ao ser presenteado com aquela conversa.
Foi uma tarde agradável. E depois de muito tempo ele voltou à melhor parte da conversa.
-Eu acho que você é um bom garoto. Então vou te dar um presente sim.
Voltou até a sala, abriu uma sacola de couro grande, onde guardava algumas ferramentas e de lá tirou um brinquedo. A similaridade acentuava-se, parecia mesmo que o bom velhinho tirava algo do saco de brinquedos para dar-me. Pegou um objeto de madeira que provavelmente era feito por ele. Era uma mini rena bem talhada, muito bonitinha.
-Aqui está, esse é o Rodolfo. Ele é meu amigo, mas quando vínhamos para cá ele disse que queria ficar aqui com você. Então é seu agora. Pode brincar bastante com ele. Eu agradeci e quando meu pai voltou mostrei a ele, depois saí para brincar com meu novo brinquedo.
Na noite de natal acordei assustado porque havia uma luz em meu quarto. Demorei um pouco para entender que era Rodolfo, o nariz dele estava aceso, aquela bolotinha de madeira era uma linda luz azul de led. O meu presente de natal dado pelo amolador de tesouras barbudo dava um sinal.
Corri ate o quarto de meu pai para mostrar a ele, mas quando lá cheguei já não estava mais aceso. Papai examinou de todas as formas o objeto e disse que seria impossível, era apenas madeira, não havia nenhuma lâmpada ali dentro, provavelmente eu havia sonhado. Mas eu garanto que foi tudo real.
Senhor Leon nunca mais voltou a nossa rua. Nunca mais foi visto. Alias, apenas papai e eu o vimos. Ninguém da rua conversou com ele, ninguém o viu entrando em nossa casa.
E sempre me lembro daquele dia, daquele sorriso afável. Do velho barbudo que comia bolo comigo na mesa da cozinha e me dava alguns conselhos e um presente mágico. É uma daquelas pessoas que passam pela vida da gente e traz uma luz, uma inexplicável luz.
Nunca me esquecerei daquele senhor Leon e seu carinhoso gesto de carinho amizade e ternura.
E até hoje nas noites de natal acordo assustado tendo a impressão de ter visto uma luz em meu quarto. Olho para a rena que está sempre na mesa de cabeceira e me lembro do dia em que acendeu. Uma única vez. Fez isso para que eu nunca me esquecesse daquele senhor que com seu carinho e conselhos transformou-me em um menino e um homem melhor.
Acho que na madrugada silente ela volta a acender. Enquanto vela pelo meu sono e embala sonhos.
Eu sempre achei que ele era um papel Noel, mas um papai Noel ao contrário, bem diferente dos outros. Visitou-me de dia, não veio escondido, conversou comigo, me deu um presente bem diferente tirado de uma sacola de couro, tratou-me com carinho, deu-me conselhos e encheu a casa de alegria com aquela risadona. Fez de mim um menino melhor. Tinha similaridades com o bom velhinho, mas era meio que às avessas, o contrário do que eu esperava de um papai Noel, acho que bem melhor que o original.
Sr. Leon meu papai Noel atrapalhado.
Espera… Leon não é Noel ao contrário?