Criação

Na floresta de Naimisha havia eremitas de todos os gêneros, que se subdividam em duas espécies básicas: os desiludidos com a existência e os de sincera aspiração espiritual.

Arda, que fora um vaixia muito rico e obeso, agora era o mais magro de todos, limitando-se a comer um grão de arroz por dia, que mastigava dezenas de vezes. Chamavam-no também de “ruminante”, já que adquirira o hábito de mastigar mesmo quando não tinha nada na boca. Mentalmente ao menos, comia sem parar.

Punja, com seus cabelos desgrenhados, nunca se lavara desde que chegara em Naimisha. Chamava de irmãs as moscas e se martirizava quando pisava em alguma formiga, observando atentamente a atividade dos formigueiros em uma de suas meditações. Certa ocasião, outros cortaram a ponte de cordas frágeis, sobre um riacho pouco profundo, que o asceta estava atravessando, para que enfim tomasse um bom banho. Contudo, graças a seu siddhi recém-adquirido, levitara sobre as águas...

Ramana fora fazer corte à sua amada, com o belo cavalo de seu pai, xátria orgulhoso, porém uma violenta chuva se abatera. Até aí, apesar de molhado, não carregava maiores preocupações, quando uma carruagem passara apressada e emporcalhara seus belos trajes de lama. Chegando imundo à casa da filha de brâmane, era a mãe que estava na janela, não a filha. Horrorizada, fechara o vidro de forma brusca, apavorando o garanhão, que para completar dera um pinote e fizera despencar o cavaleiro. Levantara-se um bom tempo depois, quando a Lua já despontara no céu, manchando a mão de sangue ao tocar a testa. O cavalo partira para um espontâneo Ashvamedha e, após o papel ridículo, a família da noiva se sentira ofendida com o pouco-caso do prometido (como ousara vir tão sujo?!) e dissolvera o compromisso, dando uma quantia a seus astrólogos para estes dizerem que haviam errado seus cálculos (ao declará-los destinados um ao outro desde a infância) e que na verdade os dois nunca poderiam se casar, havendo inúmeras incompatibilidades planetárias. Apesar do casamento ter sido arranjado, Ramana se apaixonara com sinceridade pela jovem, que nunca lhe devolveria os anéis de ouro e esmeraldas e rubis que recebera como presentes...

Após esta desilusão, o rapaz se retirara para a floresta, onde por coincidência reencontrara sua antiga montaria. Como penitência, nunca se sentava.

Shuna, que andava cheio de arranhões, cicatrizes e marcas de mordidas, não temia nenhum animal. Kuja estava com o corpo repleto de hematomas porque uma vez perdera o controle sobre seu siddhi, seu espírito entrara no corpo de uma moça e vice-versa, sua carne apedrejada e tendo recebido diversas pauladas por uma multidão que não admitia sadhus afeminados, ao passo que ela, ao ver seu terrível reflexo na água, com uma enorme barba, soltara um grito que enfim fizera Punja cair num lago.

Nem todos eram assim tão respeitados portanto. O velho Sauti, que fora quem lograra devolver o companheiro atrapalhado ao seu corpo, que era ouvido por todos. Não se tratava só de um contador de histórias, com milhares de fábulas em sua memória. Sabia todos os Vedas de cor e fazia previsões, para os indivíduos, e profecias, para o mundo. Alguns o temiam porque nem sempre anunciava visões auspiciosas. Todavia, quando precisava dizer algo importante à comunidade, chamava todos os eremitas, sem fazer exceções, não admitindo fugas, e os macacos e as serpentes cercavam o lugar. Tinha uma voz grave, de possância irradiante, que levaria um cego a pensar que era um gigante, mas “não passava” de um anão sem medo. Calvo, agradava-lhe acariciar sua barbicha enquanto falava.

“Onde está Saunaka? Achem-no! É preciso que todos ouçam o que tenho a dizer hoje.”, pediu a um grupo de seus discípulos, que saíram tropeçando entre as moitas. Iria falar sobre Kalki, o avatar vindouro. O sábio Saunaka tinha que estar presente.

Depois se lembrou de onde o amigo certamente devia estar.

*

Ao contrário de seus irmãos de austeridades, Saunaka não usava barba. Raspara todos os pelos do corpo, a cabeça lisa, e em sua testa havia a representação de um terceiro olho, em tintas vermelhas, que reluzia e se tornava dourado quando o sábio se concentrava. Este desenho não era um mero adorno de exibição, como para alardear que possuía sua terceira visão aberta, e sim um traçado mágico que expandia seus dons. A partir do verdadeiro terceiro olho, órgão espiritual invisível aos não-clarividentes, conseguia ver outra realidade e muito mais: além de descortinar o plano espiritual, o olho da fronte proporcionava siddhis de um nível superior, que resultavam de uma vontade inabalável.

Entretanto, naquele momento, sentado em posição de lótus, parecia perturbado, e não tirava a atenção de uma roda de madeira que girava sem parar entre as árvores. Do tamanho de um homem adulto e apoiada sobre um suporte que lembrava dois braços erguidos próximos, com duas mãos que permitiam seu giro mas não a deixavam escapar, era uma obra divina de inúmeros detalhes que ficava no centro da floresta.

Em imagens esculpidas de forma minimalista referentes à Krta Yuga, a idade do ouro, havia faces serenas de aspirações superiores, reis cravados numa conduta exemplar, santos brâmanes não cedendo às tentações, os camponeses felizes com suas colheitas fartas e os habitantes das cidades exercendo seus ofícios com brilhantismo; nas figuras que diziam respeito à Treta Yuga, a idade de prata, a necessidade de professores e mestres, pois as virtudes antes espontâneas começavam a precisar ser aprendidas, de um embasamento teórico e de leis escritas; na seção dedicada à Dvapara, a era da dualidade, os conflitos entre a luz e as sombras, deuses e asuras; e em Kali Yuga milhares de pequeninos seres batalhando constantemente, formigas em convulsão, imperando a violência, Saunaka escutando os estalidos metálicos das armas, os choques entre as espadas, junto com gritos e tambores, e sentindo o cheiro de sangue, brâmanes devassos cheios de joias, sua religiosidade mero formalismo, os rituais esvaziados.

Um javali descia às águas para resgatar um luxuoso rei-elefante de um monstro marinho; os deuses e os demônios batiam o Oceano Lácteo para obter o elixir da imortalidade; Vishnu de olhos entreabertos, o fechamento de suas pálpebras marcando a hibernação de um Brahma, o lótus onde o Criador se sentava se fechando e secando com o fim de um grande ciclo cósmico, um kalpa: estas e outras cenas marcavam a roda, esparsas em seus diferentes momentos no interior de cada representação de era ou ora acima, encimando, e ora abaixo, quando ocorria a volta, porque o movimento incessante era a única permanência. Nisso o consolo para o mal, Saunaka um dos mais preocupados com a degeneração em curso na Kali Yuga, embora um pouco menos desde que recebera aquele presente.

Ao seu lado, um pequeno e silencioso cãozinho bastardo, chamado Kulapati, que o acompanhava aonde fosse, de pelos brancos e olhos pretos, agitando o rabo, e o sábio também nunca o deixava para trás. Não feria um único animal desde a noite na qual, diante da fogueira acesa naquele mesmo lugar, no coração de Naimisha, pretendera sacrificar um porco aos deuses, com o intento de aplacar mesmo que fosse um grão de areia dos males da era das trevas. Não se conformava com guerras, adultérios e pestilências. Ignorava porém a aflição e o terror do suíno amarrado, que teria gritado pela lâmina da faca antes de ser entregue às chamas e levado por Agni à morada celestial. Pronunciara alguns mantras evocando o auxílio de Indra e seu raio para punir os malfeitores; requisitara a justiça no tempo das injustiças, a sua uma época em que o ouro comprava a maioria dos juízes; que Varuna tivesse piedade dos ignorantes.

Contudo, antes que golpeasse o porco, uma luz fulminante por um triz não o cegara e o animal desaparecera. Espantado, olhara ao seu redor, mas fora ao se concentrar com sua terceira visão que vira quem havia agido: “Carne, sangue e cinzas: tudo isso é transitório, e os filhos e irmãos de Indra não têm o poder de realizar o que você pede; algo maior há de vir. Em vez de pensar no impermanente, de se preocupar com o que é sonho, foque-se em compreender o que permanecerá quando eu estiver morto: a placidez do seu oceano, sua paz profunda, o coração apaziguado e o equilíbrio de seu espírito.”, uma voz que não precisava de lábios para se manifestar: vinha de um pássaro fabuloso, branco, que lembrava um cisne, porém muito maior, e que se aproximara do leite misturado com água que o oficiante teria abençoado e bebido após o sacrifício. Bebera apenas o leite, deixando a água. Tratava-se do próprio Criador, Brahma. Após o choque inicial, Saunaka se prostrara. O deus fora crescendo em altura, as asas permanecendo, seu rosto e seu corpo se humanizando, outras três cabeças brotando de seu tronco e se arranjando aos poucos.

Uma lenda curiosa dizia que um dia tivera apenas uma cabeça, porém depois de cortar uma parte de seu corpo, em uma de suas experiências na formação do mundo, gerara desta um ser feminino, ao qual dera o nome de Satrupa, mas que ficaria conhecida como sua futura esposa Sarasvati.

O criador (e não era qualquer criador!) se apaixonou assim que viu sua criatura, não tirando mais os olhos dela, fascinado com sua beleza. A deusa, envergonhada, procurou fugir dos olhares de Brahma se movendo em todas as direções, ao que o Deva, para não deixá-la escapar, gerou outras três cabeças, uma à direta, uma segunda à esquerda e a terceira atrás da original. Satrupa voou até o céu, o que fez o deus criar uma quinta cabeça que só olhava para cima. Assim o Criador passava a ter cinco cabeças, e após se transformar em cisne alcançou-a no alto, onde fizeram amor. Dessa união teriam se originado os seres celestiais e o primeiro humano deste ciclo cósmico, Suayambhuva Manu. A quinta cabeça, contudo, teria sido queimada por Shiva, após uma discussão entre os dois entes supremos, que logo decidiram parar de brigar ou o universo sofreria sérias consequências.

Diante de Saunaka, sua pele era da cor do céu estrelado; sua cabeça primordial tinha sobre si uma coroa de ouro e pedras preciosas que se abria em vários andares, a base mais larga e o topo um botão meticulosamente esculpido; trajado em vermelho, calçava sandálias, seus pés com dez dedos; e mostrava quatro braços, repletos de colares e braceletes de ouro e pedras preciosas, segurando em cada uma das mãos um objeto: uma flor de lótus, um cetro, um rosário e uma roda.

O asceta era também um erudito de grande renome, conhecido por sua atividade como gramático e pelos tratados de fonética e fonologia. Do seu ponto de vista, a língua era um presente dos deuses para que os homens não só se comunicassem entre si como tivessem acesso a estâncias superiores. Ensinava a quem desejasse aprender as corretas pronúncia e entonação dos mantras e hinos védicos. Fora o professor do grande brâmane Katyayana, matemático e também estudioso do idioma, famoso por uma reelaboração da gramática de Panini e pela composição de alguns Sulba Sutras, textos a respeito da geometria da construção de altares. Tinha orgulho do discípulo, ao qual dera inúmeras aulas sobre o valor da palavra: “As sagradas palavras não são, como parecem, resultados da convenção humana. Elas foram dadas a nós, advindas de planos superiores. Ainda que o objeto não seja perene, a essência do seu sentido é como o ouro usado para fazer diversos ornamentos: as formas trabalhadas mudam, mas o material é eterno.”, contudo, toda essa cultura era reduzida a pó, tomava uma aparência insignificante diante da grandiosidade de um deus como Brahma.

“Este presente que vou lhe dar irá ajudá-lo a entender a transitoriedade dos fenômenos, para que se entretenha mas não se envolva com eles. Tente compreender: um dia o universo voltará ao estado latente. Quando isso ocorrer, não haverá mais periferia, só existirá a sua consciência, isso se quiser permanecer em deleite com o Todo, caso contrário adormecerá junto com o oceano, que não apresentará mais ondas, aguardando que estas voltem a se mover e se levantar pela vontade do Supremo. Este kalpa ainda há de durar muito do ponto de vista humano, só que fatalmente a criação será dissolvida e até eu terei um fim. O que prefere? Se manter desperto mesmo à noite ou despencar no esquecimento? Trabalhe; mas não se aflija; lembre-se; mas não se angustie pelo que passou. Liberte-se das convenções e da dor. Compreenda a renúncia e o desapego. Se quer ajudar ou receber ajuda, livre-se do desejo a esse respeito. Encontre satisfação em si mesmo. Só então não precisará mais dormir quando o Sol se puser.”, Saunaka sabia dos dias e noites daquele que lhe falava, respectivamente as fases de expressão e manifestação e as fases de potencialidade, às quais todas as criaturas estavam sujeitas a menos que atingissem a plena Liberdade, Moksha, mantendo a percepção de Si próprias ainda que sem veículos para se manifestarem. Para isso, era preciso alcançar a santidade, a pureza absoluta, sem se apegar às aparências e aos frutos das ações, agradando-lhe uma imagem dos jainas segundo a qual as mônadas dos seres vivos eram como cristais, obscurecidos pelas impurezas do karma, que se acumulavam feito poeira; uma vez livre do karma, um espírito se apresentaria como uma mônada perfeitamente limpa e cristalina. Para chegar a isso, quanto trabalho! A diferença era que os jainas acreditavam na autonomia de cada mônada, perfeitas em si mesmas, enquanto Saunaka, como brâmane, sabia que num determinado momento chegaria a hora de uma religação a uma fonte primordial, o Brahman, a Divindade eterna e impessoal, a Existência essencial da qual emanavam todos os fenômenos, inclusive o Criador, Brahma. Apesar dos nomes semelhantes, havia uma grande diferença entre fonte e emanação, causa e fenômeno, o deus criador sendo mais um entre tantos fenômenos, e por isso também perecível, transitório. O Brahma que aparecera ao asceta ia para o seu último dia, seu último kalpa, cujo término não significava portanto uma volta à Divindade essencial para todas as criaturas: sem alcançarem Moksha, com a dissolução cósmica os seres retornavam meramente ao poder de Brahman, não à Origem, permanecendo adormecidos num estado imanifesto até o momento de se re-manifestarem.

O poder de Brahman, conhecido como Prakriti ou Maya, formava a partir de si os fenômenos mentais e materiais, começando por um corpo que poderia ser identificado como um deus pessoal, Ishvara, que posteriormente se manifestava como uma trindade, a sagrada Trimurti: Vishnu, Brahma e Shiva, preservação, criação e destruição. Na verdade, os Brahmas eram sempre os últimos a surgir, pois Vishnu era o aspecto de perene existência do Brahman e Shiva sua característica de transformação e mudança, portanto eternos, enquanto um novo criador era gerado do umbigo do Preservador depois de cem kalpas, ou seja, cem expansões e cem contrações cósmicas. Um mahakalpa, após o qual o falecido Brahma anterior se reintegrava à roda dos renascimentos, e quando o universo tornava a existir se encarnava em uma condição privilegiada para obter a Libertação, com a qual não poderia mais nascer ou morrer, não estando mais sujeito ao poder de Prakriti, entrando e deixando o mundo à vontade, e tal era a condição de todo aquele que se Realizava no yoga, o objetivo de Saunaka.

O Criador o presenteara, ao fim da conversa que tiveram, com a roda que agora estava no centro da floresta. Antes de partir, tomara mais uma vez a forma de esplendoroso pássaro, o Hamsa, muito mais do que o cisne ou ganso ao qual aludiam os textos; e voara para os Céus.

“Aí está você. Sabia que iria achá-lo aqui.”, de volta ao presente, Sauti reencontrou o velho amigo onde esperava.

“Tem algo importante a dizer, que requeira a presença de todos?”, indagou o linguista, permanecendo de costas para o outro eremita.

“O tema será bem interessante para todos, principalmente para você. Recebi uma revelação a respeito de Kalki, o avatar desta era. A vinda dele não está tão distante quanto pensávamos.”

“Na conversa que tive com Brahma quando fomos presenteados com este chakra, ele aludiu a algo maior que estaria por vir.”, em sua imensidão, cada kalpa se subdividia em duzentos mahayugas, cada mahayuga o conjunto das quatro eras representadas na roda, denominadas yugas, da idade perfeita, Krta, à era das sombras e da violência, Kali, ao término da qual o ciclo recomeçava com uma nova idade do ouro, que depois iria decair, assim até o fim de um universo e o nascimento de outro.

“O que para os deuses passa depressa, para nós tarda. De todo modo, Kalki virá com relativa brevidade e a sua aflição poderá diminuir, meu amigo.”

“Eu deveria reduzir a minha preocupação com o mundo. Sei que é tudo transitório, que uma nova idade perfeita virá, e que mesmo esta terá um fim, pois a decadência é inevitável. Mas não consigo ignorar a dor das criaturas! Não posso ignorar o grito, o pranto, as angústias causadas pelos massacres indiscriminados. Não me conformo com o egoísmo desenfreado, se bem que talvez o meu sentimento seja uma forma de egoísmo, o que me impedirá de algum dia me unir ao Brahman.”

“O seu amor pelos seres vivos nunca será um obstáculo. Afinal, se Vishnu não amasse sua Maya, não haveria manifestação.”

“Mas é justamente por isso, Sauti. Como vou poder sair do mundo das formas, e mergulhar na essência, se não me desapego do palpável?”

“Não há razão para angústia. Algum dia, estou certo que não irá mais se afligir. E amará da forma mais pura, sem apego, separando o leite da água. Por enquanto, só lhe resta observar e aceitar. Se tentar lutar contra esse problema, será uma luta perdida. Não entre em batalhas! Você não precisa alcançar a Libertação amanhã porque ela já está em você neste exato momento. O verdadeiro yoga consiste em descobrir que Somos o que sempre fomos e seremos: o atman, a centelha de Brahman. O seu problema está em seus condicionamentos, nos conceitos que criou e que poluem a água no trecho do Oceano que é você. Tenho a intuição que o seu destino é, antes de obter Moksha, se tornar um Brahma e criar o seu próprio universo, que amará com toda a intensidade do seu ser enquanto durarem os seus dias.”

“Se fosse assim, por que o Criador deste nosso mundo não teria dito nada a respeito?”

“Vishnu ainda deve estar observando os possíveis sucessores, entre os espíritos mais nobres. E o atual Brahma não diria nada de forma direta, mas deve ter deixado, se estou correto, escapar alguma sugestão, ou algum sinal.”

“Pensando bem, é verdade. Pelo que me disse, consegui deduzir que este será o seu último kalpa. Será que veio me procurar justamente para começar a minha preparação? Esta bendita roda...É uma síntese da criação, uma obra de arte divina que a cada vez que observo percebo novos detalhes. Como será criar um universo? Diante de algo de tamanha magnitude, me perco nas minhas reflexões e perguntas, fico pensando em como seria moldar cada forma, dar corpo a cada ser recém-despertado!”

“Deixe de lado os questionamentos e viva. O que é certo é que tem a eternidade à sua frente para compreender. Não pule os degraus imaginários de uma escada que não tem nenhum degrau.”

“Isso é bem típico seu. Joga a moeda, e depois a puxa de volta.”

“Sou cruel, não sou?”, Sauti esboçou um sorriso.

“Mas me diga, o que de novo lhe foi revelado sobre Kalki que já não esteja nos sagrados Vedas? Como se encontra na Gita, o senhor de todas as coisas a cada época desce ao mundo e se encarna com um novo nome para libertar o santo, destruir o pecado do pecador e estabelecer a justiça.”

“E claro que o demônio a ser enfrentado em uma Kali Yuga, fruto de toda a degeneração acumulada, será muito pior do que qualquer monstro das eras anteriores. O terrível Ravana, perto do inimigo que virá, não passaria de uma mosca.”

“Mas o que há de novo?”

“Seja paciente. Saia daí e venha comigo. Venha ouvir com todos.”

“Está bem...”, e dessa forma Sauti terminou de reunir todos os eremitas de Naimisha para contar o que sabia e devia sobre o avatar Kalki.

Kulapati, no qual não estavam reparando, observava tudo em silêncio. Nunca latia, a ponto de Saunaka se questionar se o cãozinho era mudo.

Sua língua estava em perfeito estado. Na realidade, era muito mais do que um simples cão: em seu peito, no espelho contido em sua centelha, milhares de rodas e triângulos, atravessados por raios, se cruzavam sem parar, e sem perder a constância nos movimentos, que se repetiam sem erro, sem que nenhum detalhe fosse esquecido. Kulapati era o deus Dharma, a personificação das leis da vida, da ordem do cosmo. Vinha treinando seu “dono”, sem que este percebesse, para levá-lo a compreender a Lei; e mesmo que Saunaka desencarnasse, que trocasse de corpo, que seu espírito fosse para outro planeta, não haveria problema: o acompanharia, sob outra forma, ensinando-lhe de outra maneira, tudo perfeitamente calculado para culminar no Dia em que o asceta iria se tornar o Criador de um novo universo.