A fonte e o rio (um conto inquietante e inquietador)

No Vale das Águas, era uma vez, certa Nascente pródiga e fecunda que gerava, de tempo em tempo, novas fontes, as quais ia espalhando pelo viscoso e fecundo pântano.

Tudo em conforme, cada nova fontezinha seguia o determinado de borbulhar em puras e cristalinas águas, incessantemente brotáveis. A mãe-fonte orgulhava-se de suas infindáveis filhas, todas em mais absoluto e previsto proceder.

Ocorreu, entanto, em indeterminado e não notado tempo, que nova e surpreendente fonte brotara. Já no nascer, a mãe estranhara o ímpeto da umazinha. Gênio forte e inquietante desejo de extrapolar os limites do charco e da vida em que se prendiam todas. Diferentemente das irmãs, não se continha no fazer usual e necessário de gerar novas águas, trazidas à luz dos obscuros e invisíveis lençóis.

Uma tarde, a tal cismava planos desconcertados, quando se inebriou com súbita chuva, mansa e morna, que lhe tocara a superfície. Pingo com pingo. Umidade em unidade. Arrepiou-se na dúbia reciprocidade daquele toque sutil. Por largo tempo, esteve a cogitar em angustiosa prostração.

Sempre contrária. Quase rebelde. Olhar úmido e triste de buscar o desconhecido. Ninguém que aceitasse ou mesmo entendesse tão diversa natureza. A mãe incomodada com a estranheza daquela uma, buscava, sem êxito, retê-la em seu modos e domínios.

Mais e mais, acentuava-se a distância das outras. Fechada em si, tristonha, sem com quem partilhar enviesados pensamentos. Resignava em seu canto e pranto, só seu. À espera. Nem sabendo ao certo de quê.

Então, foi que em abafada e quente tarde de verão, pesada chuva, voluptuosa e arrebatadora, varreu todo o pântano com desusado ímpeto.

As outras todas fontes, amedrontadas, recolheram-se ao conchego da mãe-fonte, salvando-se do agressivo assédio. A fontezinha rebelde, contudo, em busca do apenas adivinhado horizonte, projetou-se além de si mesma e enlaçou-se na torrente que se avultava.

A mãe, em pânico, percebendo o risco, tentou, num último e inútil abraço, guardar para si a obstinada filha. Em vão, que esta, sorridente e estontecida, já num pleno e definitivo enlace com as inéditas correntes, partia em direção ao rio, absoluto e inexorável.

Fernando Antônio Belino
Enviado por Fernando Antônio Belino em 27/12/2019
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