Os 2 Reinos
Contraponto da criação divina, o qual certas espécies animais não se misturavam, um gato rude e silvestre, segui os passos de um dócil, pedinte e sereno cão vira-latas.
Ambos trocavam as misérias do almoço pelo jantar; mas sempre era o cão, o pedinte; e ao passar pelas cidades, corriam as rodoviárias e estações ferroviárias para dormir e pequenos comércios de gêneros alimentícios para alimentarem-se. Era ver alguém comer, que o vira-latas deixava as orelhas cair, afundavam os olhos na órbita e jazia faminto, lambendo os beiços em frente ao feliz comedor.
Comumente, sendo o mandatário na empreitada de descolar um rango, gíria que aprenderam nas estradas, o cão tomava à frente, liderança que o gato nem se importava. Aliás, nesse quesito, fazia de tudo para ser seu servo e fiel escudeiro; esquecia até que ele é da espécie felina, a qual outras espécies a tem como ladrona.
Honestos amigos! Essa é a melhor definição para ambos. O gato era mais falante, observador dos costumes e comportamentos das espécies, o que fazia dele, um ser mais atento ao cotidiano. Por sua vez, o cão preferia ser pragmático e ouvir, caladamente, o que o amigo tinha a dizer sobre o mundo.
Porém, ultimamente está esgotado, saturado de saco cheio com o amigo; outra expressão que aprenderam nas ruas. E o motivo é ouvir do gato, que se eles fossem de sangue puro, de raça importada, não estariam vagando pelo mundo; mas em um colo, ouvindo elogios, comendo ração apropriada e balanceada, tomando água mineral, sendo tosados mensalmente, frequentando shoppings, teriam plano de saúde e assistência médica, etc. Dizia que se tivessem um pouco mais de sorte e a beleza natural ajudasse, estariam nas passarelas representando seus donos. Um glamouroso luxo.
Em certos momentos, sabe-se lá por que, afinal, cães nunca souberam o que é TPM, o cão enfurecia e respondia para o amigo, que deixasse de tolices, porque a vida que eles levavam, era a mesma que acontecia com outras espécies. Incontinente, o gato retrucava, dizendo que era o que seu amigo pensava; porém, ele enganava-se totalmente.
Em uma noite fria, sem um mísero cobertor para cobrir, os dois chegaram à rodoviária de São José dos Jegues. Dormiram por lá. No dia seguinte, o gato acordou e achou estranho, o amigo não tê-lo despertado; pois a viagem planejada seria longa e cansativa. Foi ao encontro do amigo. Tinha falecido e ao lado do corpo, um pacote e uma caixinha Pegou-os e leu: "veneno para ratos" no pacote e a caixa era de chá Mate Leão. Ficou pensativo se havia se suicidado; ou se o pacote vazio e a caixa eram apenas uma maneira de disfarçar a parada cardíaca provocada pelo frio. Não era especialista, mas conhecia um pouco de anatomia canina.
Procurou as autoridades para levar o corpo para o IML para fazer as devidas diligências, ao que ficou sabendo, que o município não se responsabilizava e não perdia tempo em procurar os familiares de cães e gatos vira-latas andantes, maltrapilhos, desocupados e vagabundos; e se fizessem alguma coisa, seria levar o corpo para fazer testes em seus laboratórios experimentais e se tudo estivesse dentro dos parâmetros e normas, o cão seguiria para a indústria de saponáceos.
Inclusive, alertaram-o que a mando do rei, mensalmente, um gabaritado e honrado laçador sai às ruas da cidadela, cuja finalidade, é mostrar aos desvalidos a sua, que é laçar os animais que não possuem família, residência, trabalho e pedigree documental. A próxima caçada do laçador está marcada para o dia seguinte. Espetáculo hilário e ao mesmo tempo, de arrepiar os cabelos do corpo.
Atônito, o gato apressou-se em sair da cidade; o que deveras fez. E ao entardecer, antes das luzes superficiais ofuscarem as ruas pedregulhosas, partiu sem deixar rastros e vestígios. Naquela tarde e noite, evitou até ronronar; e ainda que estivesse gripado, de sua boca não saiu um mínimo espirro. Conforme ouvira, a tragédia poderia ser sua sombra.