A colônia

Acumulei ao longo da vida muitos inimigos. A superação dos obstáculos naturais sempre me foram inatas. As vitórias diárias de todas as adversidades, naturais e sobrenaturais me fortaleceram.

A brevidade da vida me ensinou, desde muito cedo, a não perder tempo, a me manter em meu devido lugar e a aproveitar todas as oportunidades como se fossem a última e a primeira.

Já perceberam como viver é perigoso demais?

Muito jovem ainda, ouvia dos mais velhos da colônia sobre o cuidado com a comida e a bebida. Eles só comiam ou bebiam algo, após alguém experimentar antes. Ficavam ali, olhando, observando as reações do provador aleatório até terem certeza de não haver veneno.

Alertavam eles, sobre os perigos dos caminhos entre a lida e a volta para casa. Era preciso observar atentamente qualquer alteração, mesmo a menor que fosse. Era uma questão de vida ou morte.

Quase que por instinto seguia à risca as sábias instruções.

Haviam convenções e seminários, à nossa maneira, quando as estatísticas apontavam para um aumento generalizado de acidentes. Era preciso entender os motivos e propor soluções para evitar a incidência.

Guerras entre as colônias eram corriqueiras. Os motivos, os mais variados. Poderia ser uma simples disputa territorial ou vingança mesmo motivada por crimes contra indivíduos deste ou daquele domínio.

Todas as guerras tem motivos vis e, quase sempre, todos perdem. Não sei em outras dimensões, em outros mundos desconhecidos, mas, por aqui, guerrear é perder minutos preciosos de regozijo.

Não seria este o sentido da vida, a busca da felicidade?

Trabalhava à noite e sempre sozinho. Precisava ser rápido, identificar locais seguros onde arranjar comida, a suma felicidade, levar um pouco para minha mãe, comer o mais que pudesse para garantir a energia necessária para as intempéries do retorno.

Quando digo que viver é perigoso demais, não me refiro a uma ideia cientificamente experimentada, comprovada em laboratório que simula condições reais, mas da vida como ela é. Me refiro àquele instante em que a luz se apaga sem nos darmos conta do por quê. No átimo em que um último pensamento nos ocorre: como aconteceu, o que virá depois, há um depois?

Na colônia era comum desaparecimentos súbitos. Os que chegavam em casa avariados estavam fadados ao óbito. Há quem diga que a punição era canibal.

Que tipo de sociedade é tão implacável com os fracassados e desvalidos?

Não sou afeito a reflexões diuturnas, minha natureza não permitiria tal regalo. Se o faço agora é porque estou na encruzilhada entre a resignação e a luta insana pela liberdade.

Meu máximo esforço me desfalece. Começo a ter visões. Será um sonho a aproximação de algoz de proporções tão descomunais? A que colônia pertence esta espécie de animal que se aproxima devagar com um misto de curiosidade e medo, sem contudo, parecer agressivo? Meus ouvidos me enganam ou ouço a canção “Lucy in the Sky with Diamonds”?

Tenho pés e mãos amalgamados entre si. Os mais velhos da colônia nunca alertaram sobre este líquido viscoso sobre o qual pus os meus pés, sem nunca mais poder sair dele. Os guinchos a plenos pulmões são incontroláveis e involuntários. O corpo reage em vão. Um jato de adrenalina é a tentativa derradeira.

Sem chão, embora preso nele, em meio à sensação de embriaguez, de flutuação e desequilíbrio, pude notar olhos enormes a me fitar. Pareciam me oferecer consolo. Me falavam das angústias dessa espécie e de outras. Que olhos tristes tinham! Eram infelizes, sabia. Talvez vivessem muito mais tempo. Talvez, somente eles tenham a noção exata sobre o conceito de tempo cronológico, khrónos. O nosso tempo está mais para o kairós e o aíon, tempo indeterminado, sagrado e eterno. O tempo da natureza, com os respectivos ciclos da vida.

A felicidade que, entre nós, se limitava à busca diária de comida, nessa espécie, parecia potencialmente variada. Com tempo de sobra, poderiam se dedicar a pensamentos elevados acerca da vida, ao pensamento filosófico, ao ócio criativo, ao predomínio intelectual e altruísta diante de todas as espécies existentes, tornando a natureza equilibrada e divina. Poderiam se dedicar ao amor.

Aceito o meu destino pelas mãos desse infeliz da espécie humana.