NARCISO

    Há muitos, muitos anos, quando toda a gente - pequenos e grandes - gostava de ouvir histórias, e quando nos bosques e lagos ainda havia ninfas lindas e amorosas, nasceu um menino que foi o mais lindo e o mais infeliz do mundo.
    Chamaram-lhe Narciso e nunca ninguém tinha visto um menino tão lindo. Cresceu rodeado de carinhos e elogios e tornou-se num bonito rapaz.  Muito esbelto, cabelos fartos e anelados a emoldurar uma testa encanadora, olhos sedutores, muito brilhantes e profundos , braços e pernas vigorosos e elegantes... as moças que o conheciam andavam todas perdidas de amores por ele. E não eram só as moças que gostavam de Narciso, as ninfas que, por esses longínquos tempos, viviam  pelos bosques e pelos montes também o desejavam.
    Toda a gente o admirava e se sentia irresistivelmente atraída pela beleza de Narciso. A sua fama de jovem mais belo do mundo espalhou-se por todo o lado. Vinha gente de longe só para  o ver.  As pessoas que o conheciam pessoalmente admiravam-no tanto que se sentiam acanhadas na sua presença e tratavam-no sempre com muita deferência. Por isso mesmo, por ser admirado e idolatrado por toda a gente, Narciso acabou por se tornar vaidoso e arrogante.  Desprezava os outros jovens da sua idade, não correspondia às suas brincadeiras, ignorava-os orgulhosamente e nem sequer queria falar-lhes ou estar junto deles.
    Tinha um coração frio o lindo Narciso, sem sentimentos, vazio de afectos, de sonhos de amor. Sentia-se superior a todos e a todos desprezava.
    Ora, num bosque perto, vivia a ninfa Eco que, embora raramente se deixasse ver, todos sabiam que era linda e meiga e doce - um verdadeiro encanto de ninfa. Além de ser linda, Eco gostava muito das pessoas  que passavam pelo bosque onde vivia.   Acompanhava-as nos seus passeios e caminhadas e inspirava-lhes sentimentos de alegria e bem-querer. Muitos raminhos de flores silvestres foram colhidos ao longo dos caminhos do bosque e depois oferecidos por inspiração de Eco... O que ninguém sabia é que Eco era uma ninfa muito infeliz. Ela não tinha voz própria. Não podia falar o que pensava e o que sentia. Só podia utilizar sons que ouvia e repetir as últimas palavras das frases que as pessoas diziam em voz alta. As pessoas julgavam que Eco repetia o que lhes ouvia por brincadeira e achavam-lhe muita graça.
    Ninguém sabia também que Eco de tanto ouvir falar em Narciso às pessoas que passavam no caminho do bosque, queria muito vê-lo e punha-se a imaginar como ele seria. 
Que era muito bonito, já ela sabia, mas seria simpático, alegre?... Imaginava a boa Eco que ele havia de ser amigo de brincar,   de dizer graças, de conversar, e há muito tempo que ardia em desejos de o ver...
    Ora um dia, finalmente, Narciso foi dar um passeio e, por acaso, passou pelo bosque de Eco. Ia sozinho, como de costume. Já dentro do bosque parou para apanhar  um raminho que caíra duma árvore. Limpou-o de folhas e fez com ele  uma varinha com que continuou o passeio a bater com ela na perna, como que a marcar o ritmo dos seus passos. Eco que o observara atentamente, enquanto ele preparava  a varinha, pôs-se a segui-lo atraída pela sua beleza. Tudo nele a encantava, umas costas desempenadas, ombros largos e fortes... e aquele caminhar airoso e seguro... ela  já sentia desejos de se tornar visível, de se mostrar  a Narciso, de lhe sorrir, de lhe tocar... mas sentia também uma enorme timidez porque não podia falar. Pobre Eco! Se ela tivesse voz... mas as palavras de amor, as meiguices, que lhe nasciam no coração vinham  morrer-lhe nos lábios à míngua de voz que as levasse aos ouvidos de   Narciso... e, invisível, foi-o seguindo de perto
    De repente, Narciso parou. Pensou que tinha ouvido passos atrás de si... Voltou-se e olhou à volta , mas não viu ninguém.  Continuou o passeio e Eco continuou a segui-lo, sentindo-se cada vez mais atraída para ele. Um pouco mais adiante, Narciso ouviu o estalar de folhas secas debaixo dos pés de alguém ... Desta vez já não teve dúvidas, alguém caminhava atrás de si. Voltou-se rápido e ali estava Eco a olhar para ele, totalmente visível, com um sorriso de imenso contentamento nos lábios.
    -Que queres tu de mim?
    -...de mim... - repetiu Eco toda enleada.
    -Oh! Já sei que és. Deixa de andar atrás de mim. Não gosto de ti.
    -...gosto de ti... - repetiu Eco e, num arroubo de carinho e entusiasmo, chegou-se mais para Narciso e tentou lançar-lhe os braços ao pescoço. Narciso  empurrou-a de si violentamente. 
    -Não me toques e pára de me arremedar, nem venhas mais atrás de mim, eu preferia  morrer a ter de te amar  - e desatou a correr para o interior do bosque
    -...te amar... - ainda balbuciou a pobre ninfa, mas ficou ali parada, imóvel, ao ver Narciso fugir de si como se ela fosse um monstro.
    Quando voltou a si do choque emocional em que o empurrão e a fuga de Narciso a tinham lançado, Eco ficou tão envergonhada, tão magoada e ofendida que resolveu refugiar-se  nas montanhas da região onde nunca mais ninguém a visse. Agora vive nas cavernas mais profundas da montanha, onde apenas se ouve as palavras que as pessoas lhe gritam, mas que parecem vir repetidas de muito longe como se ela ainda  estivesse envergonhada da  recusa de Narciso.
     Quando Narciso parou de correr, no interior do bosque, estava ao pé dum lago de águas muito límpidas, muito puras. Cansado da corrida e, impressionado com a frescura e a limpidez da água, sentou-se na margem, mesmo junto duma cristalina fonte que permanentemente alimentava o lago. Sentiu  sede e debruçou-se sobre a fonte para beber.
Era fresquinha a água daquela fonte e Narciso, debruçou-se outra vez sobre ela e bebeu de novo. Já saciado, ficou ali debruçado a olhar a água do lago. Notou então, dentro da água, mas quase à superfície, uma figura que  olhava atentamente para si. Era linda.  Cabelos, olhos, faces, a boca... Narciso ficou encantado com tanta beleza... Devia ser uma ninfa que vivesse naquele lago... mas que linda! ... Narciso estendeu-lhe a mão e a encantadora figura correspondeu com o mesmo gesto. As mãos foram-se aproximando, mas quando a dele ia mesmo a tocar a dela, tocou na água e a ninfa desfez-se e desapareceu. Mas foi por pouco tempo, passados momentos lá estava ela a olhar para ele... linda, linda... Narciso chegou-se mais à água e esboçou um beijo, a ninfa correspondeu de novo, e ali estavam os lábios dela prontos para o receber. Cheio de um imenso prazer, Narciso fechou os olhos para beijar a ninfa, mas os seus lábios tocaram a água fresca do lago. Quando Narciso abriu os olhos, amargamente desapontado, a ninfa  tinha  desaparecido outra vez. Mas, com dantes acontecera ela voltou e, passados momentos de ansiosa espera, lá estava de novo. Narciso queixou-se:
    -Porque me foges tu, ninfa dos meus encantos? Se eu te sorrio, tu sorris-me de volta, tento tocar-te e tu estendes também a tua mão, quero beijar-te e tu estendes os teus doces lábios a querer acolher os meus... mas no último momento... porque me foges?    
  
 A ninfa não lhe respondeu, só ficou ali a olhar para ele com um ar de profunda tristeza que era também o que sentia Narciso.
    As tentativas de tocar, de beijar a ninfa repetiram-se, mas sempre com o mesmo resultado... e Narciso cada vez mais encantado ficou ali atraído, irresistivelmente atraído pela ninfa do lago, que não era mais do que a sua própria imagem reflectida nas águas cristalinas do lago. Passou-se muito tempo  e o pobre Narciso, preso naquele encanto, ficou fitando as águas do lago  e tentando, sempre inutilmente dar à sua ninfa testemunhos do seu amor.
Depois de seis dias de dolorosas frustrações e de seis noites passadas à beira do lago, ansiosamente, à espera que a luz do dia lhe revelasse de novo a sua ninfa, o infeliz Narciso, debilitado, confuso e incapaz de sofrer por mais tempo aquele mistério que sempre, no último momento, o separava da sua amada, resolveu juntar-se definitivamente a ela, e mergulhou nas águas do lago.
    Nunca mais ninguém o viu, como acontecera com Eco. Mas junto do lugar onde Narciso tinha mergulhado nasceu uma linda flor de seis pétalas brancas que depois se espalhou  por todo o mundo como testemunho do mais lindo e mais infeliz menino do mundo - a flor é o narciso que nos ficou até hoje.
    Ficou-nos também a palavra narcisismo, para nos prevenir contra os perigos do excessivo amor próprio.