Sem botas

E na abertura do testamento, Jean, Paul e Pierre, os três filhos do falecido Armand Mullins, reuniram-se perante o tabelião, o qual leu as últimas vontades do falecido.

- A instalação hidropônica na Lua fica para meu primogênito, Jean.

Isso era tão certo que o contemplado não esboçou qualquer sinal de surpresa.

- A nave de carga deixo para meu segundo filho, Paul.

Radiante, Paul ergueu a mão direita para Jean.

- Toca aqui!

Bateram as mãos.

- Eu fabrico e você transporta - determinou Jean.

Ergueram-se para deixar o escritório do tabelião. Ao passar por Pierre, Jean remexeu-lhe os cabelos.

- Boa sorte com a sua parte na herança, irmãozinho!

E rindo, saiu acompanhado por Paul.

O tabelião esperou que os dois mais velhos se retirassem antes de prosseguir na leitura.

- E, finalmente, para meu querido filho caçula Pierre, deixo meu gato, Sylvestre.

Pierre ergueu as sobrancelhas.

- Um gato?

O tabelião balançou a cabeça.

- Precisamente, um gato. E deixou um endereço onde deverá ir buscá-lo.

- E essa agora - resmungou o rapaz.

* * *

Pierre Mullins desceu do aerotáxi em frente ao endereço informado pelo tabelião. Era um laboratório de engenharia genética especializado em quimeras - animais sintéticos que poderiam lembrar monstros mitológicos e eram usados como recreação por gente endinheirada. Pela primeira vez, Pierre começou a imaginar se o pai não lhe deixara algo substancial de herança. Afinal, quimeras podiam valer somas bastante expressivas...

Depois de se identificar e passar pela recepção, foi encaminhado à sala de Marianne Comtois, a jovem técnica que chefiava o setor de custódia do laboratório, onde eram mantidas as quimeras antes de serem entregues aos seus adquirentes. Marianne era quatro ou cinco anos mais velha do que ele, usava óculos retangulares sem aro e tinha os cabelos tingidos de rosa, o que contrastava com seu sóbrio guarda-pó branco e o vestido preto.

- Ah, sim, Sylvestre... - comentou ela, enquanto consultava um terminal de computador em sua escrivaninha. - Um Ocicat castrado com tamanho equivalente a um gato de dois anos, pelo camurça com pintas chocolate. É um belo animal!

E vendo o ar de decepção no rosto de Pierre:

- Não era o que você estava esperando?

- Francamente? Quando vi o endereço, pensei numa quimera... que eu poderia vender e usar o dinheiro para investir nalgo mais útil.

Marianne cruzou as mãos sobre a escrivaninha.

- Mas Sylvestre é uma quimera!

- Pela descrição que você fez, parece exatamente um Ocicat comum. O que ele tem demais?

Marianne sorriu.

- Pensei que soubesse... ele fala!

- O gato fala? - Repetiu Pierre intrigado.

Marianne ergueu-se de sua cadeira.

- Venha ver... e ouvir... você mesmo.

* * *

Sylvestre era o único ocupante da sala de custódia. Não estava numa gaiola, mas deitado num sofá, exatamente como faria um gato comum. Com uma diferença importante: estava assistindo um filme numa tela que ocupava toda a parede. "Casablanca", notou Pierre. Com a entrada do casal, ele ergueu a cabeça e fixou neles seus grandes olhos verdes, orelhas levantadas. O filme pausou de imediato.

- Olá Marianne! E esse deve ser Pierre Mullins, meu novo mestre - disse o Ocicat, com uma voz que parecia perfeitamente adequada para um gato.

- Você me conhece? - Indagou Pierre, acocorando-se em frente dele.

- Seu pai me disse que você viria algum dia. E Marianne sabe que sou muito valioso para permitir que qualquer um me veja ou fale comigo.

Pierre olhou para Marianne, que sorriu e balançou a cabeça em concordância.

- Sylvestre é muito esperto...

- Falando nisso, Marianne... posso ter um particular com meu mestre, a sós? - Inquiriu o gato.

- Naturalmente!

Sylvestre ergueu-se nas quatro patas e espreguiçou-se, arqueando o dorso. Pierre sentou-se ao seu lado no sofá e acariciou as costas do gato, que ronronou, antes de deitar-se novamente. O rapaz pensou que ele fosse dormir, mas por fim reabriu os olhos e o encarou.

- Aposto que ficou decepcionado quando soube que eu era a sua herança, não é?

- Confesso que não entendi, a princípio...

- E deve continuar sem entender, creio. Mas, não se preocupe: há alguém que pode lhe explicar tudo sobre mim... Marianne, óbvio.

- Imagino que sim. Afinal, ela trabalha aqui.

- Gostou da Marianne?

- Ela é bem bonita, sim...

O gato baixou o tom da voz.

- E está solteira. Gosta de gatos. Gosta de mim, sobretudo.

- O que você está sugerindo? - Pierre também baixou o tom da voz.

- Não parece óbvio? Depois que me instalar na sua casa, convide Marianne para um jantar comemorativo.

E bocejando:

- Já fiz uma lista dos pratos preferidos dela... da carta de vinhos... e do fundo musical.

Deitou a cabeça entre as patas e ronronou:

- Vocês vão formar um belo casal.

E, quase inaudível:

- Eu gosto de crianças.

- [10-12-2017]