Para Além dos Currais
Nenhuma das vacas sabia o que acontecia para além dos cercados da fazenda, entretanto todas tinham certeza do que ocorria dentro (ou pelo menos pensavam assim). Mimosa era a mais esperta e velha de todas as vacas e não foi surpresa para ninguém que ela fosse considerada a líder do rebanho.
- A Vaca-Mãe tem nos preparado um lugar melhor! Muito além do que seus olhos podem ver e seus corpos tocarem! – Dizia nas reuniões dominicais. – Todo o leite que lhe és retirado serve como oferenda à Ela e logo um mundo melhor nos será apresentado! Imaginem: um pasto infinito para nós e ração eternamente em nossos cochos! – E todas mugiam, admiradas com a história.
Talvez por isso as vacas trabalhavam tanto e nunca reclamavam da retirada de leite pelos seres humanos. Algumas vacas discordavam das ideias de Mimosa, mas sempre eram agredidas a chifradas e isoladas imediatamente. Azeitona era uma dessas vacas? Sim e não. Ela nunca disse nada sobre as pregações de Mimosa, embora fosse completamente cética sobre o assunto. Provavelmente era a única que enxergava o que realmente acontecia dentro dos currais. Mimosa não era apenas uma líder, mas ela era privilegiada! Todas as vacas abriam caminho para ela passar, todas a obedeciam (pois ela dizia ser a ponte entre o rebanho e a Vaca-Mãe).
O rebanho parecia cego: “Deixem metade do pasto ileso para que eu me alimente”, dizia Mimosa e todas as outras vacas obedeciam. “Não resistam à retirada de leite, pois essa é a vontade da Vaca-Mãe! ”, gritava e todas obedeciam. A lei básica para viver no rebanho era: Mimosa sempre está certa, não importa as circunstâncias, ela exibe a vontade divina da Vaca-Mãe. Assim, Mimosa foi durante muito tempo a líder insubstituível do rebanho, portadora de toda sabedoria das vacas.
Não demorou muito para que o rebanho de vacas começasse a se sentir superior em relação aos outros grupos animais. As galinhas eram tachadas de seres inferiores, os cavalos de escravos humanos e os porcos de imbecis que se deitavam na lama, sujos por natureza.
Durante todas as reuniões dominicais Azeitona ia para um canto isolado do curral, sempre pastando sozinha e muitas vezes tachada de louca. Fora em uma dessas reuniões que um corvo pousou em uma das estacas próximas a ela e perguntou curioso:
- Por que não está junto ao rebanho?
- Não gosto da forma como levam a vida... – Respondeu enquanto mastigava.
- Ouvi histórias sobre vocês... histórias engraçadas! Os outros bichos dizem que vocês acreditam em um pasto infinito e uma ração eterna fora dos cercados da fazenda, é verdade?
- A nossa líder, Mimosa, prega isso sempre e o restante do rebanho vai em suas histórias. Diz que é a vontade da Vaca-Mãe.
O corvo riu e logo após sua risada escandalosa deu sequência a conversa:
- Não há nenhum pasto ou ração lá fora, pelo menos nunca os vi em meus voos.
- E o que há lá fora? – Perguntou, rapidamente... para não dizer automaticamente, se mostrando nervosa e curiosa. O tal corvo acabara de reacender toda sua curiosidade.
- Não entendo muito bem as construções humanas, mas é diferente de tudo que vi aqui: as árvores são mais altas e feitas de concreto, aves gigantes de metal sobrevoam o céu e as casas sempre têm cercados de cimento e que dão choque. No geral, o mundo humano não é verde, é cinza.
- Não há pastos mesmo... – Disse em um tom um pouco triste. As orelhas baixavam e a mastigação ficou, automaticamente, lenta.
- O únicos pastos infinitos que vejo são feitos de metal. Estendem-se até o horizonte e estão em movimento, às vezes parados. Chamam-nos de carros.
Azeitona voltou a olhar para o rebanho e sentiu-se triste, vendo-as seguindo as palavras de Mimosa, que aparentemente estavam erradas.
- Então por que Mimosa inventou essas histórias? – Perguntou indignada.
- Não sei, tudo o que soube sobre vocês veio dos porcos, galinhas e cavalos. Alguns dizem que os humanos também têm sua Mimosa. – E logo em seguida, já tendo conhecimento do que queria, o corvo levantou voo e desapareceu nos céus. Azeitona não se dera conta de sua partida e ficou a refletir sobre o que ocorria fora da fazenda.
Os dias se passaram e a política do curral se manteve a mesma. Mimosa sempre fora a privilegiada, o rebanho a seguia e Azeitona era sempre deixada de lado. Muitas vezes Azeitona tentara convencer as outras do mundo cinza dos humanos, mas nenhuma chegou a ouvi-la e todas suas tentativas se tornavam frustradas. Houve um certo dia, porém, que o fazendeiro escolheu algumas vacas e as colocou num caminhão. Houve uma euforia dentre todas! O rebanho acreditava cegamente que o caminhão era a passagem para a ida até o pasto infinito e que todas as vacas escolhidas iriam descansar para sempre no leito da Vaca-Mãe.
Tanto Mimosa quanto Azeitona foram escolhidas para irem no caminhão e ambas foram embora do curral. Todas sentiriam falta de todas, menos de Azeitona, lógico. Ninguém gostava dela e nem mesmo ela gostava do restante. A maioria a considerava infiel ou herege. Entretanto todas as vacas estavam felizes, pois as outras iriam para um lugar de paz e comida em abundância.
Foi um longo percurso na carroceria do caminhão. As vacas não se davam conta de nada, menos quando o caminhão parou e todas tiveram que sair e entrarem em um prédio grande com uma placa enorme escrita: “MATADOURO LINVING”, entretanto nenhuma das vacas sabia ler e isso foi completamente ignorado por elas e entraram felizes. “Estamos indo ao paraíso”, “É aqui que iremos viver livres para sempre”, mugiam.
- Irmãs! – Gritou Mimosa. – Ao passar por essas portas veremos um lindo pasto infinito e seremos alimentadas para sempre! Vamos finalmente enxergar o rosto da Vaca-Mãe e descansar em seu leito!
E agora a promessa parecia estar completa. As vacas viveram durante tanto tempo obedecendo os princípios da Vaca-Mãe, passaram tanto tempo dando os privilégios à Mimosa, agora certamente era a hora em que todas seriam libertas e viveriam em paz e harmonia para sempre em um lugar claro, vívido e bonito. Agora a promessa da felicidade se cumprira!
Porém a visão que tiveram ao entrar no prédio não foi das melhores. O que lhes foi prometido como paraíso estava mais para um lugar de sofrimento. Várias carcaças de vacas penduradas e com o sangue jorrando sem economizar. Homens vestidos de branco, ceifando várias outras e vacas e bois. Mugidos de dor e sofrimento ecoavam em todas as direções e o cheiro forte de sangue espalhava-se nas narinas do rebanho. Estavam ali para serem mortas, certamente. E todas estavam desesperadas! Gritavam e perguntavam o que fariam agora, mas Mimosa não sabia responder! Ficara boquiaberta e surpresa com a situação enquanto as outras vacas se inquietavam e distribuíam empurrões e coices umas nas outras. A histeria fora solta dentro daquele pequeno grupo. E foi naquele breve momento em que Azeitona confirmava a grande estupidez do rebanho... estupidez em acreditar no que apenas uma vaca dizia, sem nem ao menos conseguir provar. Estupidez essa, muito maior do que a dos cavalos escravos dos humanos e a dos porcos imundos que se deitam na lama.